– Pai-ê: o senhor vai querer qual sanduba mesmo?
– Traga o maior, estou faminto. Não demora, senão ele esfria e eu esquento.
– Só vou me encontrar com uma pessoa especial e volto loguinho.
– Cuidado.
Rosaflor e o viúvo Nouneime, seu pai, mudaram-se pra lá sexta-feira passada. Não conheciam ainda nenhum morador daquele condomínio e, quem dera!, vice-versa. Rosa cotidianizou-se em facul-lar-net / net-lar-facul; Nou tonificava a preocupação em proteger a integridade daquela. Raramente saía dessa e do apê. Punia-se, vivendo dentro duma bolha de concreto, porque não conseguia diligenciar certos atos e escolhas de Rosa. Não se conformava que um dia ela adotaria o mundo e o chamaria de pai, não se conformava com o fato de que o pátrio poder não dispusesse do direito de coibi-la de experimentar a vida sexual. Nouneime flagelava-se. Dentro da bolha. Anos a fio.
Rosaflor avisou ao pai que naquela noite iria lhe apresentar seu príncipe encantado, Grosgolom, guri o qual namorava firme num site de relacionamento em Second Life – embora nunca o tivesse visto tridimensionalmente em pessoa. Pra dizer a verdade, Rosa nunca namorou sequer ficou com ninguém, em nenhuma outra circunstância. Nunca fora tocada por um macho diverso do pai. Sendo assim, tudo o que o cinqüentão do Nou mais temia ali chegou (justificadamente) à tona: ele portava a síndrome de himenolatria crônica cumulada com uma espécie de complexo de Electra subvertido*, mas ninguém o sabia, nem mesmo ele próprio, pois os sintomas se desincubaram pela primeira vez nas linhas a seguir.
Alarmado diante do risco de sua planta unigênita correr perigo de fato, Nouneime tropeçou nas vertigens e cambaleou até conseguir um abraço da parede. Encostou nela o braço direito horizontalizado, acolchoou os olhos mareados, e começou a assistir, na primeira fila, a exibição sucessiva de paranóias diversificadas (vivenciando as hipóteses, antecipava o sofrimento) e toquetoquetoqueteou se o tal namorado da filha não passava de um safado drogado (momento em que sua idade caiu para a casa dos 45); pensou se o tal amor da filha não fosse um daqueles tarados hábeis em predar usuárias de internet (daí sua face descolagenada e cabeça grisalha se ajustaram à de um homem de 37); visualizou um sujeito a trazer consigo uma caravana de deéssetês e contaminar a filha, além de engravidá-la e escapar das obrigações (sua idade despencava para 22); depois se agachou, subjugado, ao hipotetizar a própria filha teclando meses a fio o grelhinho em frente a uma webcam para um ogro suplicante, “um ogro, meu deus, tu-tu-tu-do menos um ogro” – conclui, com respaldo no nome tolkieniano do pretendente (daí uma estrutura atlética se desmoronava mais rápido que aquelas roupas senis pesadas, donde um bebê se desenrosca com dificuldade e sai engatinhando).
Hic et nunc, ouvia-se um meninóide de meio metro esgoelar um senhor buaaaá. O berro sirênico começou a incomodar – e preocupar sobremaneira – os moradores do andar e prédio inteiro, os quais chegaram ao alvitre de adotar as devidas providências, graças à iniciativa do morador do 666: um blogueiro insone carente de realidades inéditas.
22 horas na pinta. Rosaflor e Grosgolom nem se dão conta da viatura, da ambulância e da Van do Conselho Tutelar estacionados na porta do edifício. Entram, lesadamente apaixonados. Rosa estranha o modo como o porteiro a cumprimenta árido. Rosa e Gros entram-saem do elevador e seguem pelo corredor cujo apartamento se achava seguindo o murmurinho. A porta do apartamento se notava aberta de longe. Lá chegando, Rosa e Gros depararam-se com um monte de gente lá dentro. Uma vizinha-mãe aborda Rosa, sobre o capacho “Welcome”.
– Você mora aqui no 667, né, mocinha? Como pôde?... – ataca, abismada.
– Moro sim, que houve aqui?, algum ladrão entrou?, cadê meu pai, ca-ca...? – trêmula, questiona e se escora na mão de Gros, enquanto um gambé se aproxima do casal, carregando o bebê-alarme no colo.
– Quanta irresponsabilidade! A senhora saiu e deixou seu filho sozinho, pelado, cagado: em péssimas condições. Além do mais, veja só, ele não cala a boca um minuto, há horas berrando. Deve estar faminto. A senhora está presa em flagrante delito, por abandono de incapaz. Faça o favor de me acompanhar até a 12ª Delegacia Seccional...
– Meu filho??? Ma... deve ser um engano. Ou devo estar no apartamento errado – pensou ela. – Não, já sei: é uma pegadinha, né, ahn, fala aí? Vocês, hein! Aposto que foi idéia do...
Num dado instante o bebê se cala, de súbito, estica um dos bracinhos ricos de dobra e baba de contentamento quando alcança o chaveiro emborrachado do Shrek, brinde ganhado com a compra do maior sanduíche, da mão do genro Gros.
– Traga o maior, estou faminto. Não demora, senão ele esfria e eu esquento.
– Só vou me encontrar com uma pessoa especial e volto loguinho.
– Cuidado.
Rosaflor e o viúvo Nouneime, seu pai, mudaram-se pra lá sexta-feira passada. Não conheciam ainda nenhum morador daquele condomínio e, quem dera!, vice-versa. Rosa cotidianizou-se em facul-lar-net / net-lar-facul; Nou tonificava a preocupação em proteger a integridade daquela. Raramente saía dessa e do apê. Punia-se, vivendo dentro duma bolha de concreto, porque não conseguia diligenciar certos atos e escolhas de Rosa. Não se conformava que um dia ela adotaria o mundo e o chamaria de pai, não se conformava com o fato de que o pátrio poder não dispusesse do direito de coibi-la de experimentar a vida sexual. Nouneime flagelava-se. Dentro da bolha. Anos a fio.
Rosaflor avisou ao pai que naquela noite iria lhe apresentar seu príncipe encantado, Grosgolom, guri o qual namorava firme num site de relacionamento em Second Life – embora nunca o tivesse visto tridimensionalmente em pessoa. Pra dizer a verdade, Rosa nunca namorou sequer ficou com ninguém, em nenhuma outra circunstância. Nunca fora tocada por um macho diverso do pai. Sendo assim, tudo o que o cinqüentão do Nou mais temia ali chegou (justificadamente) à tona: ele portava a síndrome de himenolatria crônica cumulada com uma espécie de complexo de Electra subvertido*, mas ninguém o sabia, nem mesmo ele próprio, pois os sintomas se desincubaram pela primeira vez nas linhas a seguir.
Alarmado diante do risco de sua planta unigênita correr perigo de fato, Nouneime tropeçou nas vertigens e cambaleou até conseguir um abraço da parede. Encostou nela o braço direito horizontalizado, acolchoou os olhos mareados, e começou a assistir, na primeira fila, a exibição sucessiva de paranóias diversificadas (vivenciando as hipóteses, antecipava o sofrimento) e toquetoquetoqueteou se o tal namorado da filha não passava de um safado drogado (momento em que sua idade caiu para a casa dos 45); pensou se o tal amor da filha não fosse um daqueles tarados hábeis em predar usuárias de internet (daí sua face descolagenada e cabeça grisalha se ajustaram à de um homem de 37); visualizou um sujeito a trazer consigo uma caravana de deéssetês e contaminar a filha, além de engravidá-la e escapar das obrigações (sua idade despencava para 22); depois se agachou, subjugado, ao hipotetizar a própria filha teclando meses a fio o grelhinho em frente a uma webcam para um ogro suplicante, “um ogro, meu deus, tu-tu-tu-do menos um ogro” – conclui, com respaldo no nome tolkieniano do pretendente (daí uma estrutura atlética se desmoronava mais rápido que aquelas roupas senis pesadas, donde um bebê se desenrosca com dificuldade e sai engatinhando).
Hic et nunc, ouvia-se um meninóide de meio metro esgoelar um senhor buaaaá. O berro sirênico começou a incomodar – e preocupar sobremaneira – os moradores do andar e prédio inteiro, os quais chegaram ao alvitre de adotar as devidas providências, graças à iniciativa do morador do 666: um blogueiro insone carente de realidades inéditas.
22 horas na pinta. Rosaflor e Grosgolom nem se dão conta da viatura, da ambulância e da Van do Conselho Tutelar estacionados na porta do edifício. Entram, lesadamente apaixonados. Rosa estranha o modo como o porteiro a cumprimenta árido. Rosa e Gros entram-saem do elevador e seguem pelo corredor cujo apartamento se achava seguindo o murmurinho. A porta do apartamento se notava aberta de longe. Lá chegando, Rosa e Gros depararam-se com um monte de gente lá dentro. Uma vizinha-mãe aborda Rosa, sobre o capacho “Welcome”.
– Você mora aqui no 667, né, mocinha? Como pôde?... – ataca, abismada.
– Moro sim, que houve aqui?, algum ladrão entrou?, cadê meu pai, ca-ca...? – trêmula, questiona e se escora na mão de Gros, enquanto um gambé se aproxima do casal, carregando o bebê-alarme no colo.
– Quanta irresponsabilidade! A senhora saiu e deixou seu filho sozinho, pelado, cagado: em péssimas condições. Além do mais, veja só, ele não cala a boca um minuto, há horas berrando. Deve estar faminto. A senhora está presa em flagrante delito, por abandono de incapaz. Faça o favor de me acompanhar até a 12ª Delegacia Seccional...
– Meu filho??? Ma... deve ser um engano. Ou devo estar no apartamento errado – pensou ela. – Não, já sei: é uma pegadinha, né, ahn, fala aí? Vocês, hein! Aposto que foi idéia do...
Num dado instante o bebê se cala, de súbito, estica um dos bracinhos ricos de dobra e baba de contentamento quando alcança o chaveiro emborrachado do Shrek, brinde ganhado com a compra do maior sanduíche, da mão do genro Gros.
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*Grosso modo, o distúrbio só viria a se manifestar diante da garantia ou proximidade de desimenização da filha biológica. Mas, no seu caso, a doença haveria de progredir com pujança: tendo só Rosa de filha, vivendo só com Rosa, o zelo-ciúme-amor e paranóia de posse superavam os padrões normais, logo estimulariam facilmente uma certa glândula que – só – ele possuía, responsável por desencadear um processo de rejuvenescimento quase instantâneo, em todo o seu corpo, rejuvenescimento este impossível de se retardar.
11 comentários:
gostei da sacada o final é muito bom.
É uma merda quando nos comparam com outros autores, o leitor com isso quer mostrar que sabe o que deveras não sabe ( google ) ou nos diminuir diante de vultos bronzeados, os laureados, não as bundas que tapam o sol com a pederneira.
Sabendo do risco, deixo um campo aberto, com dois goleiros, de um lado, Voltaire e a alegoria fantasiosa, de outro, Nelson Rodrigues e a família buscapé versão cyber-coffe. E como o juiz tem que dar pra ambos os lados, fico no meio de campo com um sujeito chamado Will Self: ele já fez nascer buceta atrás do joelho de um másculo viciado em academia.
E pra que esse campo ?
Pra vc fazer embaixadinha com "as moral", como faz aqui. Superlativo mesmo.
Apenas fantasiei algo aqui: o menino coloca a mãozinho entre as coxas da filha-mãe e arranca o cabaço em sangue, coloca na boca, engole e morre.
Tragedião freudiana, claro. Mas é meu torto vício, vc sabe.
Beijos.
http://vazamentosdevapores.blogspot.com
Querido!
Fiquei feiz ao receber o convite para ler teus escritos. Não pare mais, sinto falta da tua inteligência,habilidade e imaginação fértil de uma criança que esqueceu de ser ingênua...
Gostei, gostei!!
bjo
Dani
A desinvernada - pela qual não me encarapuço em tê-la provocado - a desinvernada serviu para desagravar o autor, esse RW, que, às socapas virtuais, era cochichado como ora despido do seu ex-extraordinário talento literário, a ele concedido por Cíclope, e por ela mesma retirado, por pirraça, ciúme ou outro capricho de musa - quem as entende? Este conto desmente as aleivosias dos covardes detratores. RW não se converteu em um apenas e tão-somente copiador de bulas jurídicas padrão; rato de Fórum. O Holden Caufield amoral e iconoclasta ainda sobrevive dentro do atual terno cinza-fosco dele. Mas - seria intencionaL? -, desde o primeiro diálogo, esse aqui leitor inferiu a trama incestuosa e as referências aos Oscar-Gray & Dorian-Wilde. Estou satisfeito. Garçon, por favor, a conta.
Ricardo, me chamou a atenção a pista deixada sobre a forma que a história está acontecendo e sendo transformada pelas palavras - pela força de cada uma, o que tem sido uma de suas marcas. Achei a metalinguagem interessante - essa coisa de repente a história ir se transformando enquanto contada (e o autor, marceneiro, peão de obra ou chefe de cozinha, ir dando umas pistas sobre o seu serrote, sua pá e enxada, sem tempero). A linha que se segue sempre trazendo uma nova pista, uma novidade. Porra, gostei!
até onde chega o corpo mental de um cidadão, né não?
ducaralho eu já disse que é.
agora, você virou padrinho imediato do espaço... tente honrá-lo me deixando com cara de besta sempre.
e divulgue. tudo pela literatura boa-boa literatura, nesse mar de tanta coisa.
beijo!
Adorei entrar na sua bolsa amniótica...
hehehe... só você pra lembrar da van do conselho tutelar. muito, muito excelente. detalhista precioso.
*quero meu ingresso djá, e uma mordida na pinta, of course... hehe*
beso.
Bravo, Ricardo! Tua narrativa instigante e provocante mexe com o palco de nossas misérias. Obrigado pelo convite feito lá no orkut. Além disso, estive lendo-o através da Ana Peluso em seu fantástico trabalho de disseminação cultural. A mim, então, restam as imagens de teu belo conto aqui, agora, rondando minha mente acelerada. Bravo!
Abraços e sucesso!
Caramba Ricardo, este lance da regressão do sujeito rejuvenescendo foi uma sacada e tanto, seus contos são muito bons, um trabalho lapidado, preocupado com a linguagem.
Abraço.
Rapaz, conheci este conto e vossa pessoa no blog " O Conto do Mês", tive que fuçar a fonte, né? Prabénssssssssssssssssssssssssss.
Abs, Luciana
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