29/07/2007

Dado de 5 lados

Aos paraninfos Paulo Castro e Ana Peluso
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Mal atherrissei em sollo russo, recebo um ‘e-mail’ trazido por um pombo corrêo campineiro. Como eh cediço, soh poderia tratar dassunto conphidencial – se bem q torci para q fosse uma carta bomba actômica, tamanhera o phosso destar trabalhando no almoxariphado duma sauna moscovitta (melhor emprego q consegui, apòs cumprir pena numalcova masochiana do Castello d Neuschwanstein: condenado por vender poesia em phormatto pastilha, ensaeo em phormatto ampolla e enciclopèdia em phormatto dràgea, pois soment os textos em phormatto ‘livro de papel’ obedeciam, aa risca, a norma cultta germâneca, segundo constava na senthença, por sinal, inintelligìvel parum spiaum incapaz d pronunciar ateh mesmo uma intterjeiçaum em russo). Cruzei os dedos pra q tivessem menviado uma carta-granada ou allguns rublos pra comprar pollônio 210, pois meo dorso já não maes agüenthava a bigorna-falha na missaum anterior: descobrir ond os russos haviam scondido a ùnica amosthra congellada d varìolla existhent no mundo. Falhei bonitto. Tambèm pudera: a Rùssia possue a maeor concentraçaum d ‘freezers’ por picoleh cuadrado.

Sem avisar o gerent Serguei Putin, irmaum caçula d Vladimir Putin, presedent da Rùssia, fui ao banheiro, tamanha a curiosidad e senso d desconphiança jecatatuana. Entro. Puxo a porta. Travo-a. Arredo. Apalpo e desço a thampa da privada. Cuando vou sentar sobre a thampa, erro o assento e caeo, e soh me dou conta da falta d luz cuando jah stava em peh. Mesmo dotado d meo tatto apurado, naum localizei janela, portilha de poraum nem de sòtaum sequer um rallo ou alpendhre d ratto. Em conthrapartida, um embattumado cocô dava braçadas dignas doiro no Pan, dentro da privada. Peguei a iguaria e saciei a phome, comendo-a viva, sem piedad e pudor. 5 minutos apòs a repheiçaum, caguei o mesmo cocô, mas contiv a vontad dingeri-lo novament, sob o receio d que macometesse o sentimentto d gulla. Minto. Planejava soprar o cocô ateh endurecê-lo, a phim d arremessah-lo conthra a malditta porta e quebrah-la (considerando o fato d ela ser d isopor, naum seria taum diphìcil assim). E naum eh q consigo secah-lo! O adob suscitaria inveja em cualquer pedra. Arremesso-o, mas no exacto momento em q Serguei Putin abre a portha. Acerto em cheio a boca do Putin. Naum a do gerenthe, mas a do Putin presedent, q visitava o irmaum e phreqüentava com asseduidad sua sauna.

Havia apenas o arrulho do pombo corrêo consthruindo ninho denthro duma caixa vazia d Stolichnaya. Tomei um tremendo susto caquele uuu. Berrei e, na medida q gritava, o pombo uava, e na medida queu uava, o pombo gritava. Daì Serguei Putin scutou e correu ateh o banheiro. Todavia soh era possìvel destrancar a porta do lado d denthro, o q ser-me-ia embaraçoso, pois se naquelle breo era complicado ateh mesmo ler o meo ‘e-mail secretto’ scrito em braille (o q corrobora o caracter visionàrio do remettent), comencaixar a chav no seo devido buraco?

Naum consegui enfiar a chav (faltou lubriphicaçaum?), embora, coa sollicitude e erudiçaum do pombo, pelo menos deciphrei o ‘e-mail’: a missaum se resumia em ler e apurar a cualidad de 5 authores/obras, cualquer obra deles, a meo crithèreo, resenhas as quais deviam ser dactilographadas numa Remington, na fonte ‘Times New Roman’, tamanho 12, e, por derradeiro, serem devidament publicadas em meo aparelho K7. A missaum a mim designada compreend uma epècie d corrent q, se quebrada, leva aa mort o remettent (anterior a mim).

Naum consegui lograr êxito coa penetraçaum da chav no seo respectivo buraco. Mas naum em virtud do problema scuridaum, e sim porq ela se phazia incompatìvel com o buraco. Naquelle azado àtimo, redescobri minha mascullinedad, como se houvesse em mim abaixado um tardio MacGyver: a fechadura soh aceitaria a chav d quem usa o banheiro phemenino.

Exthraditado, aguardo o julgamento. Agora hei de usuphruir do conphorto desta cèlulla d pao a piq (privellègeo concedido a diplomados). Vou partir pra(pro) resenha/comenthàreo das(dos) taes obras/authores. Mauns aa obra. Vou screver no phormatto SMS. Envio os rascunhos aos poucos.

4:30 da mattina. Dezenas d caminhoens buzinando em unìssono: eh festa do caminhoneiro. Meiacordei, sob o embaço do sopor, e vi, deitada ao meo lado, uma carretta. Enrollada em meos lençòes accetinados. Teria eu dormido cum 'Transformer'?

Texto scrito conphorme o Acordo Orthogràphico da Lìngua Porthuguesa, em vigor desd 2009.

Obras: Ovelhas que voam se perdem no céu & Dentes guardados. Autores: Daniéis Pellizzari & Galera, respectivamente. Avaliação: 5,1 (a nota na verdade é 3,5, portanto decidi aumentá-la porque Galera é um baita bofe)
Portões adamantinos do inferno! Quem superar a torção nasal após ler os dois primeiros contos de Pellizzari, deparar-se-á com o conto-zênite do livro, intitulado “As boas maneiras do acaso”, cuja mensagem (contrapondo-se à tática do autor de expurgá-la a todo custo) nos diz respeito ao quanto nos prontificamos a reclamar, de tudo, automatamente. Este, um conto-aforismo poético (de apenas 3 linhas), funciona com inteligência, feito sob o rigor e precisão requeridos em aforismos, no caso, dando as cartas ao paradoxo. Ou exagerei: não vai além de uma tirinha destituída de desenhos-balões-quadrados?! Um outro (onde chove muita vaca, vovó, Daniil Kharms) me beliscou: influência direta deste último. Pellizzari segura uma narrativa centrada na absurdidade cênica e nonsense, nada original ou convincente. Sobressai também “História de amor nº 17”, onde o varão tenta surpreender a varoa, no 'feliz aniversário', com um prato requintado, comprado numa esquina. Mata-o bem no estilo terror chanchada e, devido ao desajeito típico de um neófito ao lidar com iguarias, acaba por prepará-lo como churrasco. A mulher, quando vê a mesa destoantemente nos trinques, quase sopapeia o homem; estraga o jantar à luz de velas, pois ele coloca na mesa – inflado de romantismo e boa-fé – talheres de prata, candelabros e vinho: luxo inadequado para se juntar ao trivial churrasco/farofa (chimarrão versão comestível). Morais do conto (de novo contrario um livro avesso a morais da história): 1ª) o homem não errou em comprar/matar a iguaria a fim de saboreá-la na companhia da amada. Não, longe disso; ele vacilou tão-só porque não soube como servi-la. Prataria se usa em pratos finos, jamais em churrasco. 2ª) a única coisa com a qual a moçoila deveria se preocupar (o infanticídio, flagrado apenas pelas lentes do leitor-voyeur) jamais poderia passar por sua cabeça, remetendo à tendência moderna de se conferir primazia ao supérfluo, em detrimento da descartável vida humana. A mulher (sob tepeême?) deu um faniquito com o menos (ou nada) importante: as pratarias, ignorando a pulsante boa intenção do homem (e a procedência da comida, como disse, revelada apenas ao leitor). 3ª) a melhor das intenções não repara uma cagada, por menor que ela seja. Ainda com Ovelhas em comento, cito o 5º excerto do simbólico “Diotima”, onde, um dos assaltantes, mascarado de diabo, ao render as vítimas e as obrigar ao ajoelhamento (alusão ao “onde dois ou mais se reunirem em meu nome, far-me-ei presente” – São Mateus, cap. 18, Vers. 18-20 / Esta é a palavra de Deus, palavra de Salvação), recria, a partir duma situação-liturgia, uma chamada ao ancestral duelo, em que o mal, invasivo, imprevisível e ímpio – e ciente da surdez divina ao apelo dos fiéis –, triunfa sobre o bem, mesmo em território inimigo, isto é, sobretudo no interior da igreja (simbolizada pelo casal unido e prostrado), subvertendo a idéia de imunidade concedida aos devotos – de um deus covarde ao ponto de abandonar seu próprio asilo. Simpatizei-me com os contos supracitados, embora pequem (assim como o livro todo) quando da superestimação duma coloquialidade infantilizante e passiva, emparelhada às canções da Xuxa (e olha que Galera consegue ser pior). Se de 18 contos safam-se 3, estamos diante dum subproduto, presa fácil do Inmetro.

Intimidam, de fato. Fico timidamente desgostoso em citá-los. Típicos livros a visar a inibição do efeito tchan-tchan-tchan. Descambam no blasé placebo. Ou incrementam os contos(da carochinha) utilizando o chiste visível em seriados do tipo "Eu, a patroa e as crianças". Âââ. "Parece que um [livro] continua o outro”, alertou o poeta L. Rafael Nolli. “Mas quem deu continuidade a qual?”, perguntei. “Vou chutar: Pellizzari”, completei. (Dentes Guardados + Ovelhas que voam = 1 livro escrito a duas mãos {de dedos negros com unhas postiças?}). São livros em formato tobogã: ambos revelam lá seus momentos de altura, mas terminam lá embaixo. Dentes Guardados indica vocação para se adaptar à cinematografia, não se ajusta à literatura propriamente dita, laureável, desafiante. Prestou um desserviço à literatura, agindo com imprudência no tocante à eleita linguagem: a chinfrim. Tratam-na como se fosse um postulado padrão de execução alimentícia. Muito do que relatam já se faz há tempos, existe baiçolando por si só, por aí, de mãos atadas com o vento. Sócios duma rediviva editora batizada de Livros do Mal (ironia-bocejo?), escrevem municiados de certa dose de carolice. Se escolheram rezar a cartilha do malditismo (sim, maldição não é dádiva, e sim um artigo vendido numa queima de estoque!), deveriam mudar o rumo, prementemente, e vestir paramentos. Escrevem contos inanidos, somalianos, esqueléticos: único aspecto deveras assustador dos livros. Se nem a geração beat/junkie me convence, imagina a geração net, precursionada pelos Daniéis. (?) Apoiá-los implica em assumir o mecenato de Sabrinas, Julias e Biancas da vida. O festejado Galera, embriagado com o champagne-estrelato, empanturrou-se com as benesses e puxa-saquice de séquitos incautos. De seu primeiro rebento, sobrevive apenas 1 único conto: Manual para atropelar cachorros, o qual recebeu adaptação teatral de Mário Bortolotto.

E pensar que Mojo (nome pelo qual Pellizzari atende ao seu clã) já formou banda de black metal... traduziu e leu bastante coisa maldeeeta, clássica, rara e atípica. (?) Escreve com acanhamento. Utiliza temas mais comportados que os de Enric Larreula, autor de Bruxa Onilda; mais apoucados que os de J. K. Rowling. Nem parece ter conferido a biografia das bandas de black metal escandinavas (de uma delas que tocou na Cracóvia, em doismilequatro) ou visitado o site da BME Encyclopedy, não aplicou nem dominou os princípios indesvencilháveis da ‘Trayectoria de la Mano Izquierda’, filosofia ditada pelo Templo de Set (Set, o deus-príncipe das trevas da mais alta antigüidade, cultuado aproximadamente há 5000 anos a.C.). Outro ponto merece caneta florescente: o sotaque gaúcho incorporado aos textos. Galera nasceu em São Paulo; Mojo, amazonense, mas ambos se fixaram em Porto Alegre. Ou seja, nenhum deles é genuinamente gaúcho. Bah, isso não vem ao caso? Naturalizaram-se tchês. Assim sendo, por que crivar sotaque, abusar do tu conjugado em terceira pessoa? – a não ser que tenham migrado para o sul ainda dentro da proveta. Bah.

Nasci em e freqüento Minas, nem por isso falo qual o Chico Bento. Nem Terência, uma vizinha de Salvador, há 25 anos instalada em solo mineiro, sofreu o prejuízo do sotaque baiano. Os caras fazem questão, forçam a base do tu, soando quase caricato. Um dia “de solzinho” ainda receio descobrir mensagens subliminares nos textos dos fulanos, exortando o movimento separatista do Rio Grande do Sul e Estados limítrofes. Humm. Duvido. Eles não dispõem de tal competência. Galera recorre de modo saudosista à sua juventude, naturalmente traçada e afetada pelo 'american lifestyle', pecando pelo excesso de lantejoulas beatniks e minimalismos bukowskianos, não alcançando o mesmo (e pretendido) choque destes. Ambos os livros [Ovelhas e Dentes] não resistem a duas leituras. Fácil domá-los. No máximo, rugem um efeito surpresa de indiferença, nada mais, só que uma mesma surpresa só funciona uma vez. Eles mantêm-se fiéis ao fluxo de imagens quase sempre linear (não é à toa que um romance de Galera se encaixou nos moldes cinematográficos), e manifestam descaso atinente à invenção de princípios, conceitos, encruzilhadas, novos caminhos ou golpes baixos.

Cito-os, de mãos dadas e aliançados, pelo fato notório de adotarem a mesma mesura (mísera em figuras de linguagem, na narrativa, recursos sugestivos, rigor na construção ou desconstrução, subtexto, metalinguagem, trama, enredo, criticidade, personagens, texturas, janelas, muros, labirintos e porenquantos). Levaram a sério a panacéia: optar pelas menores e mais usuais palavras; parcimônias verbal, adjetiva e adverbial; usar a matéria bruta. Texto, quanto mais enxuto, mais FUNCIONAL e zzz zzz zzz. Sei não. Fusca é uma coisa "funcional", nem por isso convém classificá-lo como carro. Bukowski e Fante personificaram estes, digamos, recursos, logo repeti-los não faz sentido. Dentes e Ovelhas parecem, dada a patente similitude, livros gêmeos siameses, tamanho liame entre ambos no quesito tudo, pois só se diferem nos temas. Reitero: Mojo + Galera = mesmo autor. Uma tiete-leitora do Ovelhas asseverou, emocionada: “(...) me dão medo os contos que Pellizzari escreve”. Outro: “Galera conseguiu ser menos agressivo que Pellizzari”. Hilário: desde quando Pellizzari soou raivoso? Só se for uma “violência débil, que fabrica o disforme...”, segundo Vladimir Jankélévitch. Vá ler Contos Plausíveis de Drummond, “meu fi”, tenha dó. Nelson Rodrigues, O. Enry, Poe, Guy de Maupassant, Tchekov (este, Galera referencia em um dos contos, mesmo tendo aprendido patavinas com o mestre). Causar-me-ia medo ver Diogo Mainardi posando ao lado de Lula, numa foto comemorativa da eleição de Supla para Presidente da República; causar-me-ia horror Diogo Mainardi pedir a mão de Mina Carta em casamento. Galera e Pellizzari têm o seguinte consolo-bússola: Dentes e Ovelhas foram 'debuts' (eclipsados por uma bolacha). Traduzem bem o que significa a vida, no sentido de ser algo que se tolera uma só vez.

Pro cu de Ramsés. Enquanto uns se arregimentam à panfletagem do hermetismo, abolindo a comunicação entre leitor/autor quando da inserção das alienígenas palavras de ventre pirahã, outros pasteurizam a linguagem aos brados, pedestalizando a coloquialidade batida, elevando-a à condição de Grão-Mestre. Aquilo que se verte facilmente para o cinema não faz jus à chancela literária. Quando estamos diante duma obra de difícil (ou impossível) adaptação para o cinema, significa estarmos diante da legítima literatura – o que não sói no caso dos Daniéis, precipuamente no do inoperante Galera. Blasonam: o mérito deles não se deve à tentativa-ultimato (frustrada) de convencer o leitor de que o conto-piscadela (de vida veloz e morte súbita) prescinde de sentido, mas ao fato de terem conquistado a façanha de não dizerem nada além do que não foi dito. Desconheço os livros posteriores de Galera, mas se eles ziguezagueiam sobre a mesma linha de Dentes Guardados, não seria muito fogo de artifício para pouco mérito? As ovelhas de Pellizzari deviam ter permanecido firmes no pasto; os dentes de Galera bem guardados (bem como meu livro de estréia).

Obra: A lua vem da Ásia. Autor: Campos de Carvalho. Avaliação: 10,5
Sem dúvida, catequese compulsória, instituída por decreto por algum presidente autista de um Estado gasoso. A lua vem da Ásia é a Caixa de Pandora da indignação consciente, só tornada possível pela via da loucura. Um romance-fractal. Em A lua vem da Ásia, ressalte-se a influência certa de Lewis Carroll, Joyce e seu poodle Beckett. Obra salpicada de Beckett, ultradadaístas mais cerebrais e sujidades impecáveis hauridas durante a ditadura militar. O narrador, figura desprovida de identidade definida. Um andarilho no País das Maravilhas, sem nome, idade, naturalidade, cidadania, familiares, mas que freqüenta com assiduidade tudo e todos, sob a torrente do pesadelo a fazer cócegas. Cecê nos encosta na nuca a metranca roubada de Sócrates (personagem-ouro que, segundo o narrador, é o único negro assim batizado em todo o mundo), e nos convence ser tal ameaça um cafuné. Cecê extrai seu universo particular impossível como se estivesse a espremer os suculentos cravos ali na face do "se vira", flertando com o bon sauvage de Rousseau. Em momento algum o narrador de A lua tenta apaziguar o desconforto causado no leitor. Visa, de tal modo, salvaguardar o próprio bem deste. Típico livro a conseguir a proeza de iniciar um colóquio com a sombra de terceiros, sem que a própria sombra se enciúme. Obra com pouco mais de 100 páginas, com mais de 99 trampolins, e com 107,59 becos sem saída, holográficos. O narrador parte para a guerrilha, armando-se até os miolos com seus lúdicos pesadelos. Salta para o fundo da consciência criativa sem o elástico, capacete e apetrechos de bung jumpie. O narrador mastiga os escorpiões na sopa (Capítulo Black Out), lasca-nos um beijo francês, e nós sentimos hálito de Halls. Cecê, em A lua vem da Ásia, afrontou seus e nossos demônios e santos e pernilongos e aedes aegiptys, pregando-lhes um susto-xeque-mate. Comparo, se me permitem, Cecê a Marcel Duchamp. Cecê é o Marcel Duchamp das palavras. Ambos ilustres zombeteiros: um, de modo geral, em torno da condição humana; já o outro estica os elásticos conceitos de arte(fício): considerava um ralador de queijo ou uma meia socket [ready-mades] objetos dignos de um espaço no musée du Louvre, entretanto não se identificava com nenhuma escola artística, visual, pictórica. Cecê também dispensa tarjas pretas, pois sua arte expulsa a vergastas a codificação de barras, mas mantém o diálogo-arranha-céu, mesmo desconfiado e a longa distância, com conceitos e valores.

A lua vem da Ásia: livro que, além da maturada iconoclastia, possui muitos predicados, contrapondo-se à geração-confraria 90 e à geração (nota) 00. O narrador, no primeiro parágrafo, assassina seu professor de lógica (grande sacada), por motivo justo: Campos de Carvalho, assim como o schnauzer Nietzsche, draga o compromisso com a lógica (no sentido de não se encerrar no dependente apego a ela ao ativar o pensamento), de igual modo não milita na filosofia de janotice didática. Campos de Carvalho sim sabe executar o ofício de artesão do verbo, não poupando a inserção do sarcasmo e labirintos espelhados, nem de solitárias giratórias. Romance imprevisível, onde o narrador desbrava e aponta as lacunas de nossos ancestrais preconceitos, tapando-as com preconceitos reciclados dos quais relutamos em abrir mão. Recalca-se na missão-vulto de um pária, cujo câncer-mor surge quando se olha no espelho e vê a face do irmão gêmeo que sobrevive dentro dele. O narrador não sabe quem é nem onde está sequer qual o idioma surte efeito (positivo ou negativo) sobre os personagens. Cecê detém uma escrita metamórfica e imagética em constante confluência, resistente a traças, fogo e releituras, sem o prejuízo da pujança a qual deixou minha esposa desconfiada: costumo ler A lua vem da Ásia à noite, deitado, gargalhando a ponto de minha mulher inquirir se estou chapadão. Não, à reação ao efeito Campos não sobrevem o riso-gás-hilariante, mas um riso que, mesmo emudecido para os de fora, perpetua-se no agigantamento, por dentro. Campos de Carvalho leciona a didática de um voyeur que olha para o lado de dentro. Campos de Carvalho, seja em A lua vem da Ásia, seja em Púcaro Búlgaro, merece sim o título de filósofo do absurdo. Ombreando com as diatribes de humor cinzento, soube delegar licitude ao pensamento, à individualidade e ações imputáveis. Este sim não menoscabou o poder da linguagem, relegando-a à patente de soldado raso. Cecê tira do coldre uma automática movida a água e mata tudo-todos, inclusive o conceito-adoração de si próprio. Pra que sol se tenho a lua que vem da Ásia?

Obra: Livro do Desassossego. Autor: Fernando Pessoa. Avaliação: 13,7
13,515.II.1997. Apaguem os cigarros. Desliguem os celulares. Vou abrir as cortinas. 23.IX.1997. 02.I.1999. 03.VII.1999. 14.XII.2001. 22.IX.2001. 15.III.2003. 30.VII.2004. 1º.VIII.2004. 18.VI.2006. 07.I.2007. 21.III.2007. 19.V.2007. 29.VII.2007. 06.VIII.2008. 14.IV.2009. 35.V.2010. 12.XX.2009. 56.XIV.2012. Depois do livro, Pessoa se encaixa no catálogo das maiores invenções. Incorporou de esquizofrênicos a faunos e aliou-se a si próprio através da heteronímia. Sua flauta pastoril seduz Gaia. Só entende a dimensão antimônica do livro quem aproveita seus black outs para respirar a escuridão do autor. Os únicos momentos em que vemos com clareza nosso órgão respiratório ocorre durante os black outs. Pessoa: o mais alfabetizado em poesia lusófona.

Obra: Belvedere. Autor: Chacal. Avaliação: - 1,2
Essa ciranda-cirandinha carioca deixou a paciência até de minha filha de 6 anos carcomida, de tão nissinmiojizada, por consequinte, enjoativa. Ainda bem – acho – que os poemas dele só têm sotaque quando falados. A coisa que mais me agrada em Chacal é seu prenome. Um poeta mais de atitude do que de lavra poética; logo, mediano – se é que um poeta mediano fabrica poesia. Um cara que andou e esperou tanto na fila, sem nada absorver neste lapso, só pode ser um office boy, jamais um poeta. Pratica não a poesia enquanto oportunidade de explorar seu lado imagético, semântico, lingüistico, gramático e modular. Reduz a poesia a um mero exercício de oralidade, levando ao descaso seus demais componentes tão ou mais passíveis de aquilatação. Se canalizou todo seu potencial para a poesia oralizada, entendo o estado de coma de sua verve. “Chacal, desde o ranço mimeográfilo, evoluiu, eruditizou-se”, atestaria, caso quisesse consolá-lo. Há críticos e leitores pios no que aspei. Mas como pode evoluir o que dele veio à luz, morta? Num cadáver recém-nascido, a única evolução verificada reside no processo de putrefação. E o pior não é parir uma poesia defunta, mas constatar que muitos (grande maioria) filhos das gerações 90 e 00 são a reencarnação da chacalidade. O tíbio segmento “marginal” dele está para o estampido revolucionário de Mário de Andrade assim como o voodoo da Bruxa do 71 está para o rito negro de Aleister Crowley. O coiote tísico Ademir Assunção (deslumbrado com seu cedê Rebelião na Zona Fantasma, por sinal, incondizente com o título, por ser sobremaneira pacato, seja nas letras, seja no instrumental) pupilou Chacal; portanto, este declamando, transcende aquele, cantando. Hoje começo a engrenar no porquê de haver tanta gente autoproclamada poeta: a Síndrome de Calíope vitimou blogueiros não vacinados. Uma das coisas mais difíceis, desde a popularização da internet, é esbarrar com alguém que não carregue o crachá “poeta”. Ademais, com esse negócio de tirar poesia de tudo, acabamos por não vislumbrá-la em nada; vê-se poeticidade em tudo, menos na palavra, sua forma original. Chacal relegou o poeta ao status de menestrel performático. Meus contemporâneos, influenciados pelo autor de Belvedere, demonstram uma vaidade patológica ao se afirmarem poetas, esquecendo-se de se dedicar à construção disciplinada da poesia. Contentam-se com uma cirandinha desgraçada. Chacal só não é pior que Chico Alvim. Divergem no seguinte: Chacal usa um spray entupido e Chico Alvim uma Mont Blanc ressecada. Pro cu de Tutankamon! Chacal é menor que minha pica. Sua poética não pega nem na banguela. Prazer, Chacal, meu nome é Ricardo.

Obra: O escritor imaginário. Autor: Piemonte Velletri. Avaliação: 9,0
Rechaça a mentalidade de rebanho já na dedicatória. Escreve com uma suavidade desconcertante, mas não com a típica glicose responsável pelo ressecamento vaginal da escrita, obstaculizando a penetração do leitor. Neste pequeno livro, abordou todos os temas com mais sarcasmo que Voltaire, com mais profundidade que J. K. Chesterton, com mais erudição que Claude-Gaspard Bachet de Méziriac. Condenado à última pira inquisitorial protestante, morreu queimado de cabeça pra baixo. O livro (autobiográfico?) relata o achado do diário de um personagem que tentou se matar inúmeras vezes, pela primeira vez com apenas 11 anos de idade: nesta tentativa, infelizmente o cadarço arrebentou. O escritor imaginário, até a página 40, é de difícil ingestão, mas depois deslancha para uma narrativa fascinante, realista sem ser fotográfica. Há uma passagem em que o narrador foi surpreendido pelas autoridades, enquanto pincelava a seguinte tela: uma versão doentia da estórica crucifixão. Começou pintando o Cristo europeu tradicional, depois acrescentou à Paixão uma outra cruz, de ponta-cabeça, cuja base foi enfiada na uretra de Jesus, empurrada até sair pela goela. Dois Cristos crucificados em posições perfeitamente opostas. Um dentro doutro, um empalado pelo outro. Um regaço de livro! A esperança é a última a morrer (só porque não estava na lista de desafetos de Velletri).

20/07/2007

Esgoto escarlate

Faço saber que o congresso nacional não o sabe, mas decreto e sanciono a seguinte com respaldo nas prerrogativas e poderes maneiramente constituídos (...) a mim confiados

Artigo 2.007 – esta prescreve medidas anormativas para repressão ao fabrico, autorizado ou não, e ao comércio lícito de religiões, doutrinas, seitas, mesas redondas, rodas e adesivos (VETADO)

Por ora:

I – evito sim aderir a qualquer religião, pois desconheço alguma que não crucifica a liberdade intelectual

a) seja a curto, médio ou a longo prazo a aparição dos primeiros sintomas, a religião pode designar uma crucificação intelectual degenerativa, progressiva e irreversível

II – aderisse a uma doutrina religiosa, na certa eu seria uma amazônica fraude, porque segundo meu parco arrazoado, ser religioso significa assumir sua religiosidade com autenticidade, lealdade devocional e coerência policiante, e tal decisão, a rigor, incondicional, culmina na aceitação de todas as privações inerentes à adesão religiosa

III – minha bunda se esforçou, mas não consegui me acomodar aos bancos rústicos de pau jesuíta

IV – meus joelhos tentaram, mas não consegui me ajoelhar: os tapetes muçulmanos esfoliaram as rótulas, e os muçulmanos se ajoelham para meca e ofertam a bunda para o ar, mas (vai entender) apedrejam em praça pública a bicharada

V – empenhei-me em curvar a cabeça, mas fui expulso pelos ortodoxos por me negar a encostar minha fronte no muro das lamentações (injustamente, ora, pois assim evitava o desgaste da obra tombada dos grafiteiros locais)

a) recuei dois passos e persisti civicamente a abaixar a cabeça, contudo foi surgindo um hematoma no meio do meu peito, de tanto meu queixo pontudo tê-lo pressionado, isso sem citar a dor na nuca e a coceira causada pela barba piolhenta do essênio bem atrás de mim (o que por sinal não foi de todo ruim)

b) lamento, marcelo d2, mas só agora que decolei para o brasil, num airbus a-320 da tam, lembrei-me de ter esquecido teu baseado enfiado no muro das lamentações

VI – se deus vê tudo de seu não-lugar, para que chamá-lo milhozentas vezes e em que alcunha for, haja vista que qualquer um do povo se prontifica a socorrer o emergenciado, a seu alcance, sem ser chamado

VII – há quem afirme, com eloqüência aiatolakhomeínica, que o descrédito alusivo à necessidade da existência dum deus, suprassemprezelador, leva o homem a chafurdar na seguinte cilada: acreditar que ele [o homem-humano] proclame sua própria onipotência

VIII – se deus não faz pelo homem o que este pode executar sozinho, resta infirmar que deus nunca interveio ou intervirá em prol da vida humana (ou da própria vida), considerando a hipótese de o homem, sozinho, ter aprendido a matar e matado deus, tirando nota 10, inclusive

a) o homem é tão independente de deus, que o matou sem ser por este mesmo deus interrompido

IX – deus não ressuscitou; as religiões e afins sim

X – grande coisa um deus, dotado de todos aqueles atributos, ter multiplicado pães e peixes: o padeiro faz tal milagre; os peixes se multiplicam por conta própria, isso sem levar em conta o fato de o homem também se fazer multiplicado sem ser deus

XI – para que deus? basta a natureza se incumbir de desincumbi-lo

XII – e se bíblia-corão-torá fosse mesmo sagrado, inspirados por um deus cordato, deveria ter imunidade contra as deturpações, o machismo e a selvageria

a) se quem registrou tais textos foi um canal direto, e sem rachaduras, de um deus límpido, de onde e como escoa tanto esgoto escarlate?

XIII – norteei tanto o desvio de anjos e deuses, que tenho a sensação de voar tal quais

XIV – estar no interior duma mesquita ou sinagoga é mais perigoso que estar no meio do fogo cruzado entre israelenses e palestinos

XV – por hoje, assim como montesquieu reprovou a conduta de quem não aproveitava o conhecimento apreendido, colocando-o em prática, recuso-me a crer na existência dum deus que menospreza o benefício de suas infindáveis aptidões, virtudes eteceteretices

XVI – sustentar uma tese favorável à existência ou inexistência dum determinado deus soa tão imaturo e modorrento quanto dizer que ninguém nunca esteve ateu, mas (...)

XVII – a religião deforma a opinião e tortura o bom-senso assim como a farda modela o corpo de quem reza para o cacetete atender sua prece

XVIII –

Parágrafo único

11/07/2007

A síndrome de Nou

– Pai-ê: o senhor vai querer qual sanduba mesmo?
– Traga o maior, estou faminto. Não demora, senão ele esfria e eu esquento.
– Só vou me encontrar com uma pessoa especial e volto loguinho.
– Cuidado.

Rosaflor e o viúvo Nouneime, seu pai, mudaram-se pra lá sexta-feira passada. Não conheciam ainda nenhum morador daquele condomínio e, quem dera!, vice-versa. Rosa cotidianizou-se em facul-lar-net / net-lar-facul; Nou tonificava a preocupação em proteger a integridade daquela. Raramente saía dessa e do apê. Punia-se, vivendo dentro duma bolha de concreto, porque não conseguia diligenciar certos atos e escolhas de Rosa. Não se conformava que um dia ela adotaria o mundo e o chamaria de pai, não se conformava com o fato de que o pátrio poder não dispusesse do direito de coibi-la de experimentar a vida sexual. Nouneime flagelava-se. Dentro da bolha. Anos a fio.

Rosaflor avisou ao pai que naquela noite iria lhe apresentar seu príncipe encantado, Grosgolom, guri o qual namorava firme num site de relacionamento em Second Life – embora nunca o tivesse visto tridimensionalmente em pessoa. Pra dizer a verdade, Rosa nunca namorou sequer ficou com ninguém, em nenhuma outra circunstância. Nunca fora tocada por um macho diverso do pai. Sendo assim, tudo o que o cinqüentão do Nou mais temia ali chegou (justificadamente) à tona: ele portava a síndrome de himenolatria crônica cumulada com uma espécie de complexo de Electra subvertido*, mas ninguém o sabia, nem mesmo ele próprio, pois os sintomas se desincubaram pela primeira vez nas linhas a seguir.

Alarmado diante do risco de sua planta unigênita correr perigo de fato, Nouneime tropeçou nas vertigens e cambaleou até conseguir um abraço da parede. Encostou nela o braço direito horizontalizado, acolchoou os olhos mareados, e começou a assistir, na primeira fila, a exibição sucessiva de paranóias diversificadas (vivenciando as hipóteses, antecipava o sofrimento) e toquetoquetoqueteou se o tal namorado da filha não passava de um safado drogado (momento em que sua idade caiu para a casa dos 45); pensou se o tal amor da filha não fosse um daqueles tarados hábeis em predar usuárias de internet (daí sua face descolagenada e cabeça grisalha se ajustaram à de um homem de 37); visualizou um sujeito a trazer consigo uma caravana de deéssetês e contaminar a filha, além de engravidá-la e escapar das obrigações (sua idade despencava para 22); depois se agachou, subjugado, ao hipotetizar a própria filha teclando meses a fio o grelhinho em frente a uma webcam para um ogro suplicante, “um ogro, meu deus, tu-tu-tu-do menos um ogro” – conclui, com respaldo no nome tolkieniano do pretendente (daí uma estrutura atlética se desmoronava mais rápido que aquelas roupas senis pesadas, donde um bebê se desenrosca com dificuldade e sai engatinhando).

Hic et nunc, ouvia-se um meninóide de meio metro esgoelar um senhor buaaaá. O berro sirênico começou a incomodar – e preocupar sobremaneira – os moradores do andar e prédio inteiro, os quais chegaram ao alvitre de adotar as devidas providências, graças à iniciativa do morador do 666: um blogueiro insone carente de realidades inéditas.

22 horas na pinta. Rosaflor e Grosgolom nem se dão conta da viatura, da ambulância e da Van do Conselho Tutelar estacionados na porta do edifício. Entram, lesadamente apaixonados. Rosa estranha o modo como o porteiro a cumprimenta árido. Rosa e Gros entram-saem do elevador e seguem pelo corredor cujo apartamento se achava seguindo o murmurinho. A porta do apartamento se notava aberta de longe. Lá chegando, Rosa e Gros depararam-se com um monte de gente lá dentro. Uma vizinha-mãe aborda Rosa, sobre o capacho “Welcome”.

– Você mora aqui no 667, né, mocinha? Como pôde?... – ataca, abismada.
– Moro sim, que houve aqui?, algum ladrão entrou?, cadê meu pai, ca-ca...? – trêmula, questiona e se escora na mão de Gros, enquanto um gambé se aproxima do casal, carregando o bebê-alarme no colo.
– Quanta irresponsabilidade! A senhora saiu e deixou seu filho sozinho, pelado, cagado: em péssimas condições. Além do mais, veja só, ele não cala a boca um minuto, há horas berrando. Deve estar faminto. A senhora está presa em flagrante delito, por abandono de incapaz. Faça o favor de me acompanhar até a 12ª Delegacia Seccional...
– Meu filho??? Ma... deve ser um engano. Ou devo estar no apartamento errado – pensou ela. – Não, já sei: é uma pegadinha, né, ahn, fala aí? Vocês, hein! Aposto que foi idéia do...

Num dado instante o bebê se cala, de súbito, estica um dos bracinhos ricos de dobra e baba de contentamento quando alcança o chaveiro emborrachado do Shrek, brinde ganhado com a compra do maior sanduíche, da mão do genro Gros.
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*Grosso modo, o distúrbio só viria a se manifestar diante da garantia ou proximidade de desimenização da filha biológica. Mas, no seu caso, a doença haveria de progredir com pujança: tendo só Rosa de filha, vivendo só com Rosa, o zelo-ciúme-amor e paranóia de posse superavam os padrões normais, logo estimulariam facilmente uma certa glândula que – só – ele possuía, responsável por desencadear um processo de rejuvenescimento quase instantâneo, em todo o seu corpo, rejuvenescimento este impossível de se retardar.