25/10/2006

Invocação do amigo imaginário

Innocence (Jean-Claude Gaugy)


– Que-foi-quem-é? Por quê? Uai. Pára de falar meu nome. Pára de cutucar. Que foi, hein? Espera. É o Junim. Fica chamando mas não diz. Que foi, Buiú: você também? Me deixa em paz! Dá sossego, Níkias. Vou brincar agora não. Posso não. Pára de cutucar! Quero não. Já o disse. Sai fora. Que é, Nandinho? Amola não! Escuta aqui! An? Funciona assim. Furou quem? É. Claro. Cuidado! Chute. Forte! Isso. Goooooool. Vá lá. Isso. Legal. Maneiro. Atari. Enduro. Que é, Lucca? Ann? Humm. De jeito maneira! Vá se. Olha, rapaz! Aí, ó! Isso. Doido pra caramba. Dudu? Sei. Fale baixo! Tira a mão daí, rapá! Guarda isso, cara! Alá-alá-alá. Oi, Débora! Hahã. Uai. Aqui-assim? Aqui-assim-então! Solta minha mão, anda! Não ponho a mão em boneca não. Cabelo, hein?! Estranho isso molhado-quente. O dedinho-um-dedo-só? Assim? Certo. Ai, desculpa! Foi mal. Eeeeeeee. Porque quero cheirar o dedo, ora. Ah tá. É? Olha. Hahã. Nusga! Mais baixo, mais baixo! Quase-quase. Dois agora, viu?! Ué: só você aqui? Esfrega-assim-gostoso-põe. Que que tem a unha? Suja, nada. Tsc-tsc-tsc: língua? Neim. Ué-como? Pequena é a sua imaginação. Pára de me chamar de papai.

11/10/2006

Emenda da exordial



Três dias de festa. O gosto a remanescer na boca oscila entre o de uma buceta com prazo de validade expirado – embora adulterado para o consumo – e o de uma pica com três dias de estadia onde a higiene é persona non grata. Vacilei. A gengivite titubeia mas sangra em pé. A pasta dental gruda num chumaço de cabelo sei lá de qual procedência, obstruindo os fiapos a despencar da Gillette sob o jorro redivivo. A casa inteira urinada fede qual um bretão. O roedor recusou o queijo mas comeu um pedaço da ratoeira e saiu ileso: “olha ele aí, lambendo o arroz com galinha que vomitei no primeiro dia de festa”. Um objeto esquisito debaixo do travesseiro de minha filha: bexiga não é. Blergh cá, blergh acolá. O sapatinho da boneca sumiu: minha descendente vai ficar puta comigo. Conseguiram deixar guimbas de cigarro até dentro dum frasco de Nescafé dentro do congelador. Alguém vomitou dentro da canequinha de Maria Laura. Ou cagou mole. Torrei a grana do aluguel a qual custei a extorquir do agente passivo que corta meu cabelo e cuja boca nicotinada quase corta minha buça. Ou pica. Sei não. A diferença entre falo e buceta é por demais sutil. Meramente conceitual. O da puta filho sorveu o último filete de mel de minha glande gladiadora. Burro. O viado estragou a maçaneta da porta do banheiro. Ninguém mijava-cagava sossegado. Precipuamente os dotados de pinto. Quem adentrava, a bicha traçava, com sua sunguinha vinho titular do cu piloso-gostoso. E o rato lambe a roupa vomitada a qual estreei com uma puta ou com um filho da puta. Burro. Portanto me consolo: burrice é virtude onde quem pensa perpetra ilicitude. Nossa. Há um sujeito ali roncando, peladão. Ele assegurou-me: “dormir sem calcinha é muito confortável”. As três noites custar-me-ão duradouras semanas de exorcismo. E as pessoas se preocupam se há vida após a morte. Ora. Pendenga mesmo é saber se há vida antes da morte. A religiosidade incumbe o homem com hipóteses respaldadas em revelações metafísicas, não com a concreção fatual abalizada pelo evento natural. Merda. Agendei a assistência a cinco clientes. Vou desmarcar. Devo canalizar outro pretexto. Vou procurar um pastor. Vou confessar com o padre daquela paróquia. Não. Não consigo me conter se um deles flertar comigo. Só de supor, meu pau se arma com mais dureza que qualquer suposição. A que ponto arvorei. Ah. Só os sujos exaltam a pureza. Bosta. Devo conduzir a paranóia rumo a outro beco. Preciso cessar o xingatório. Cara: não pus aquela camisinha mentolada: Halls pra buceta, sorvete pra cu. O bidê entupido. Na certa, culpa do pederasta tradutor dos efeitos pós-pó: nada supera o cafuné manejado pelo bidê. Todo cu carece de bilingüidade. Humm. Convém canalizar a percepção crítica e anotar uns troços. Esparsamente. Motes: A filosofia abortou Sócrates. A Microsoft deletou Bill Gates. O céu acionou o piloto automático. O tempo perdeu seu Rolex. A empáfia pediu esmola. Maluf havia se fodido pelos fundos, agora nos fode pela frente. A morte marcou cento e cinqüenta e quatro pontos com um Gol apenas. A vida lustrou a foice com Silvo. O cara abalroou a carreta, e o amante, ao lado, morreu. O cara nunca mais bebeu, no entanto chegou ressacado no inferno. No caminho de Drummond uma pedra de criptonita. O amigo imaginário quer ser exumado. A jurisprudência dominante negou provimento a meu sotaque. Um dia de luto foi uma vida de luta. A literatura está impregnada de Ronaldos Espers. O poeta jura ter mais imunidade que um parlamentar. É. Sinto-me. Melhor não. Devo rezar. Mas se reiterar uma mesma oração surtisse efeito, papagaio seria canonizado. Arrazôo-me. Devo me contentar com a felicidade. Aliás, a maior conquista em vida foi ter apalpado em colo o nascimento de minha descendente antes de desacolar a religião. Que ressaca. Vou rebater. Vou anunciar o suicídio naquele boteco antes que alguém proclame meu nascimento. Vou-vou. Lesado. Hipossuficiente. Vultoso. Chupado. Chupante. A par do vômito andrógino. Vou mijar na mesa de sinuca. Vou bradar que quem realmente acredita numa coisa, manifesta desinteresse relacionado àquilo que a ela se relaciona. Lamuriar que a genitora de minha descendente diz que só escrevo horrorosidades (sic a ova!) – porque sou comum, muito mais comum do que aquele frenético a aspirar o cotejo com um Henry Chinaski. Represento apenas uma rasura ao Protocolo de Kyoto, não à obra de desafetos literários ditadores, porque caneta na mão = cu sob ereção. Contudo não escrevo motivado pelo orgasmo: porque rio do leitor ao tentar remover aquilo que nele gruda – e na verdade escorre. Pretendentes devem cessar o consumo da escrita cuja graduação alcoólica prometa escândalo tipificável. As tavernas já não mais se interessam em comercializar a chata aqüosidade lírica, cardápios donde consta a marginalidade egótica, nem os centros de umbanda admitem mais incorporações de Baco. Lado outro, a gaiola literária não mais reserva poleiro banhado em ouro a tantas corujas de Minerva, a saber. A nora de minha genitora atesta razão. Basta à transgressão de massas: esta seara já não mais comporta tantos hematomas privilegiados. A palavra faz jus ao amordaçamento, à maca. Foda-se o rebuscamento arbitrário das próprias razões, a sublimação lexical (a qual pode denunciar a dificuldade de o escriba se relacionar com a linguagem simples, direta, funcional), o arcano, o caciquismo teórico. Quero ser enrabado por um clitóris biônico. Quero alguém presto a drenar a porra que circula em meu sangue escriba, saiba, digne-se. A poesia não sente tesão por mim, pois ela removeu seu clitóris – numa clínica particular, e não numa clandestina. Queria ser um analfabeto feliz; só consegui ser um doutor aprendiz. Caso e separo dia-sim, dia-não: casei com um bumerangue. Esqueço tudo o que bebo, registro o suscetível à execração. Pior que odiar carcaça estruturada por giz acometido de osteoporose, só mesmo se apaixonar pelo exercício da idéia. Para falar de amor, basta-me emudecer o ódio com um pirulito caramelado. Seja você um resenhador de menus. Seja você um societário receoso em adquirir um engradado de preservativos perante o marido. Seja quem não confere valia à significação. Quem crê inexistir o semanticamente irrepreensível. Seja a esposa disposta ao susto com o fato de haver homem bicho – que chupa buceta e tudo, ou o marido a responder que há até homem bicha – que abocanha pica. Aduza e defenda isso: Bob Esponja = versão marítima de The Simpsons. Infle o peito siliconado, e retire a tv do quarto – só assim seu marido dar-lhe-á o devido valor (porque ele descobriu: "homem em casa se tenho um televisor grande e potente???"). Elabore, pela manhã, logo ao acordar, slogans ridentes entoáveis, sempressempre em família. Compre, quando, no vértice do lazer invejável – também – em família, um cinzeiro confeccionado com lata de óleo, porque toda arte – ressalvada a escrita – merece estímulo. Compre outro cinzeiro do mesmo artesão, porque o sujeito precisa financiar a majestade do vício. Não meça sudorese e faça de tudo para o contexto se amoldar à sua língua – e tenha plena certeza: você enfim se fez William Blake. Seja uma puta e ofereça-se para todas suas consortes – estatística aponta: assim uma editora topa. Seja quem não tem crédito no cel. nem no céu. Exerça a procrastinação com pontualidade. Bata uma punheta em nome daquela saudosa amizade colorida. Faça-o, sem hesitação. Suprima parágrafos, crases e casos. Suprima a depressão típica de quem cedeu o lar durante três dias. Dê. Chupe. Dedilhe. Masturbe(-se) com a bucha com a qual se lava a mamadeira do enteado. Aproveite o vômito do amigo e engome o baseado. Faça-o. Estufe o saco. Seja o cara do pau grande a limpar o próprio cu com ele. Sinta-se liberto por não favorecer à composição de nenhuma linhagem a adotar a linguagem. Evite espelhos. Mije sem olhar para a própria urina – ou para a de outrem. Mije sobre a urina do outro. Junte-se ao semelhante.

04/10/2006

5ª sinfonia de Gustav Mahler – Adagietto

À Ana Cristina Mischiatti



A morte alicia até os imortais. Nada adianta se cruzo os braços para quem clama por alimento. O prato. O bolo excedido. O pão mastigado. Tive vontade de depredá-la com o pão duro enjeitado pelo mofo. Devo estender os braços e dá-la as mãos. A morte me acordava como o pesadelo porque não escolhia sonhar com ela. Se escolho não adiar o pesadelo e aceito sua inevitabilidade, sonho. A vida humana não poderia mesmo ser o mar róseo cuja dimensão escapa aos olhos, mas o cadáver liqüefeito, dentro da franzina rosa, microcósmico e onipresente. Posso e devo assumir o matrimônio firmado com a morte em público, local aberto, e apresentá-la esnobe aos amigos a apalpar a cintura orgânica, fundida com tétano. A beleza se afogou por Narciso. Encravo braçadas na lava. A morte merece a serenidade do homem petrificado pelo magma, cujos braços se estendem qual a decisão da pedra. Devo ser a erupção a encarar o dilúvio.


Penso em evadir da cidade natal como se retornasse ao ombro-lar. Nasci na manjedoura araxaense, porém devo ser coroado com espinhos londrinenses: diabo de casa não peca. Os próximos a mim se distanciam; os longínqüos assumem presença insuportável. Há quem corra da morte, enquanto tento alcançá-la com sapatos engraxados. Apaixonei-me pela distância, não pela ausência. Assexuei-me, como se assim não traísse a mulher-pixel. Preciso morrer virgem, tão imaculado como o dilema irresoluto. Sucumbir como o advogado que conseguiu conciliar o espaço/tempo permeado pela lógica sem intervenção judiciária. Haverei de ser enterrado pelo par de mãos calejadas com segurar promessas. Devo fenecer como quem se enojou do próprio corpo engendrado por desídia canônica.


Quero ser memorado como a praga erradicada sem vítimas inocentes. Deixe-me em paz com meu adágio: prevarique ao dizer que mereço silêncio. Deixe-me cabular o compromisso firmado com a vida. Vou rasurar todas as cláusulas. Prometa-me que poderei apodrecer ocioso sob a monotonia uníssona do vício progressivo. Afirmam ser eu covarde sem ao menos possuírem espelho em casa. Pesado demais quando as condições da realidade apenas me permitem ser alimento do lapso. A morte me tenha. Não como aliado tampouco como corvo subserviente, e sim como a penumbra que a pertence e agora retorna, nua, transpirando orgasmo. Quero a morte, não a transição anestésica catequizada. Desejo a morte como quem entoa ao câncer impenetrável pela morfina. Permita-me. Existir me dói demais se só me resta a existência. Devo acatar a voz do sono-sentinela; coexistir com o nada improtelável. Deglutir a fruta que debocha da eficácia do veneno. Ser o fato-foto em preto & branco.


A loba me amamenta porque não pôde conceber lobos: a vida não poupa a vida. Devo partir pois não preciso atribuir ordem de grandeza à experiência. Vou ao apodrecimento perante inimigos autoproclamados e condecorados pelo júbilo triunfal de participar de meu fim, afinal. Morrer sem temer o desassossego gerado pelo necromante, sem temer a exumação de minha palavra: confundida com a do sublime literato errante. Quero ir ao encontro da fadiga precursora do sono safado. Como quem custeou a prole vendendo a memória incrustada em lápide inflamável; como o verme pisoteado pela imprudente curiosidade infante, pelo pé tamanho 35 a repisar sobre o resfolegar do vício, pelo passo desengonçado do transeunte rendido pelo telefonema anos-luz da carne. Ir como quem (a)priorizou o adeus retribuído com o beijo eletromagnético; como quem apoderou-se da foice da morte e a matou com o vigor do vivo.


Inexiste mérito na revolução suicida (martírio) se há o que a natureza (desígnio) já criou. Quanto mais longa a existência, maior o verme que dela se alimenta. O diploma não precede: omite a vocação da lápide. Analfabetiza a direção da inevitabilidade. A natureza da larva excitada prenuncia a lua de mel. Inexiste novidade se a natureza gerou o termo. A vida trapaceia: prolonga-prolonga-prolonga a despedida de solteiro, enquanto a morte me aguarda toda depilada para as bodas de diamante.