22/02/2007

Faltou Freud ou a ambulância

Se este uniforme verde-amarelo-branco lhe cai bem, imagina então o efeito duma farda da aeronáutica No capricho Bem passada Barra sob medida Sapato padrão engraxado Quepe Postura austera Nos trinques Ele destoa dos demais funcionários Faz sentido abastecer no posto onde trabalha Primeiro emprego Cof cof Como dizem mesmo na tv, provoca um frisson Cabelo penteado pra trás Barba ralinha Mãos pequenas Pernas arqueadas Ombros largos simetricamente dispostos Sem vícios Ingênuo Tímido Olheiras Cicatriz no antebraço Rodelas de suor nas axilas Lisinho por inteiro, sem tatuagens esverdeadas que sugerem o aspecto de sujeira penitenciária e sem bizarrices corporais em voga Um homem pra quem pretende constituir a família cof cof cof ideal, pra se espremer os cravos das costas, cujo cecê pós-trabalho só um homem oferece O pai que sabe corrigir o filho a assistir um programa inadequado à sua faixa etária Santo deus Como ele cresceeeu Claro que seria loucura contar tudo a ele Ele me observa quando não posso vê-lo e não pode me ver quando o observo detrás da bomba de diesel Tem vergonha de mim ainda Podia cof ficar hoooras olhando pra cof cof ele, hoooras pensando ele Podia fazer coisas sem pensar com cof cof cof cof of of rrrr ele Bobinho no ponto pra deixar uma mulher independente manipulá-lo Desperdício um homem deste ralando aqui Dezenove anos Segundo grau incompleto Perspectiva nenhuma de crescimento no emprego Com um homem deste eu toparia golden shower, swing, ménage-à-trois com minha filha, inclusive o escambau Um homem deste personifica a própria fantasia, é o pilar central da realidade Por um homem deste eu teria largado a bebida aos vinte e poucos anos, cof embora ainda assim continuasse em débito com a lucidez cof Ele vem vindo Não posso com tanto Tem o queeeixo do paaai Pênis tamanho não muito grande-grosso Cabe certinho em mim Hmm ‘Ssa senhora, que boca Só o fato de imaginar sua fertilidade atrasa a menstruação Se eu não estivesse tão cansada, colocaria as cartas na mesa Estou muito cof of of a fim de dar pra ele Ah se o pego de jeito Vai provar um chá de buça com chave de pernas Aprender o beabá Pensar que já o peguei no colo Se não fosse essa of doença Vai cof ver só Suar todinha montada nele, até nosso cheiro grudar no quarto Mooorro cof of of de tesão por ele cofco fco f co fc of rrr

O frentista abaçanado chega Ela usa óculos escuros

– Prontinho Aqui a chave Vai fazer notinha, né Oi – ele a sacode de leve pelo ombro, ela rrr rrr – Tudo bem c’a senhora, mãe Mãe-e

20/02/2007

Charles Bronson

A quem é do tempo do divã


Dane-se Mereço uma cruz de malta no peito Acabo de acertar o gato Bem na cabeça Ele nem se contorce de agonia Grudo no muro o bicho que mata, desumanamente, dezenas de pardais e ratos Ele não se apieda de calangos nem de baratas, de grilos nem de formigas Tanto faz Caça e mata o que vê pela frente Até ração canina o animal ataca Jogo nele uma baita pedra mais concreta que o próprio fato Bate e não quica Todo mundo da rua aqui reunido, encantado com o regaço da pedrada O melaço imprime-se na pedra de tal maneira, que forma uma pintura rupestre Nada vai remover a mancha Quando seca, parece um achado arqueológico paleolítico A galera pensando alto, segura o malvado contentamento nos lábios quando o dono do gato chega O choramingão desmancha a roda

Toco a campainha na casa do guri do gato Sua simpática mãe atende e explica ele está lá no quarto ouvindo som, bate lá Sigo e vejo um expressivo pôster duma banda de metal afixado no lado de fora da porta Os cinco ferozes guerreiros medievais posando de cueca, não bastasse os cabelos compridos desgrenhados estilo franjinha playmobil Aberta a porta, dou de cara com um pôster do herói milionário da boca pelada Ele veste pesada cueca preta sobre calça de aeróbica cinza, deixando saliente o volume do heroísmo Trouxe seus joysticks, toma aí, obrigadão e... Não há clima pra eu estar ali muito menos para ele querer que eu permaneça Quando penso virar as costas, escorre o gelado Sua mãe me quebra um ovo na cabeça e me belisca o braço como se girando a chave na ignição Engulo susto-gema-clara e saio cabisbaixo O solo de guitarra abafa o caso

O crânio tem o mesmo formato da pedra que a amassa Estrago o bichano, uma lição pra valer Morte instantânea Chega à minha cabeça a idéia de fazer um paté daquilo Nem o sangue se mexe, embora o pessoal saiba, no íntimo, de seu implacável dom de regeneração E não é que o fedaputa reage e recomeça? Agora morro eu, de inveja do animal Ele tem uma formidável experiência pós-morte guardada Consegue funcionar, apesar de cambeta e com o olho estufado, resultado provável duma gambiarra sobrenatural Vai precisar de um zoofisioterapeuta competente Seu dono o pega no colo, sem se preocupar com o melaço na camiseta Afastam-se os dois Desmantelam o decepcionado e atônito círculo O semigato ronrona vingança, traduzida nas breves palavras proferidas pelo bocó do dono

A pedra, alma-gêmea, atinge sua cachola, encaixa-se bem nela Encontra enfim sua cara-metade Aquela cabeça felina é concebida somente praquela pedra, só pode Aquilo entra na cabeça do bicho, mas não na cabeça do dono O garoto não crê no estado de seu xodó, apesar de colecionar discos cujas capas-encartes tematizam cenas-tripas de dar gosto, um luxo só Nada vai consolá-lo da perda do transmissor de toxoplasmose de estimação Um quarentão, se ajustada a sua idade ao ritmo humano O bichano deixa ali a fauna para representar a flora, ou seja, seu crânio parece uma gorda goiaba prensada, papinha pronta para o consumo infantil Falta a colher para saborear a polpa da fruta A rua inteira a par da situação Justiça seja feita Ele merece a sanção máxima Charles bronson não erra Mata canários belgas e um curió, de fora da gaiola Mija no jornal de meu cachorro quarta-feira Desfia a paciência na mesma data

Dou-lhe um tapa nas costas O empurrão estabanado quase o joga de testa contra a parede chapiscada A molecada, de praxe, pronta pra aplicar o trote Ele tenta escapar, mas lhe passo uma rasteira Cata cavaca por uns cinco metros Daí o pego pela gola e seguro firme, enquanto despejam farinha, pó de café, catchup, mijo e ovo choco Se o pai dele pudesse, com certeza lhe daria um abraço, mesmo nestas circunstâncias Derreteria-se de orgulho, pois além de completar dez anos, seu único filho obtém aprovação na mais difícil escola da região, sem nenhum vermelho O mais homogêneo boletim da terceira série Ele chega em casa ic lambrecado e ic ic soluçando Sua mãe pergunta o que houve O menino só consegue explicar quando ela lhe estende um filhote de gato

13/02/2007

Ovelhices

Olha só O arco-íris parece exercer, empolgado, a incumbência de incrementar ainda mais o saturado mercado de superstições, dada a sua facilidade de estampar um deus celícola na umidade aérea Sabe, ele possibilita, com sua brevidade visual, a contradição de um deus mortal Uma divindade morre esmagada pela sombra de ruína Não resiste à piada diluvial O arco-íris é um deus-leque infernizado pela instantaneidade a cores Mas basta a distração do cataclismo que um sussurro-coluna remanesce O papirólogo chega e recebe do arqueólogo a charada escavada Competentes e abençoados pela graduação científica quitada a longo prazo pelo papai, decifram a narrativa-achado em minúcias Dissecam a coluna Os dois trabalham na velocidade de um grupo Reconstituem toda a hipótese de trono Ressuscitam um cisco e o coroam De um cisco pinçam um panteão

Um pigmento de história-casebre permite ilustrar uma gigantesca ruína palaciana Em matéria de engenharia teológica, somente a ruína não cerra os olhos A posteridade que é o milagre prometido a múmias, não a imortalidade A técnica de mumificação vivifica a posteridade A ruína orgânica situa-se num paraíso impermeável, além do alcance da decomposição A posteridade é o exosqueleto de um passado órfão Quando a posteridade teima em alimentar um cadáver, engorda um novo deus Esse deus é gula provocada a partir do instinto de abandono O homem extrapola a própria natureza, projeta-se no excesso, porque não suporta a idéia de existir um deus tão limitado que duvida da existência humana O futuro vai comparecer, olha ele bem ali, engatinhando e esbarrando em tudo, direto da velhice

Não o homem O macho-fêmea representa o centro, a medida de todas as coisas, mas são todas as coisas miscíveis? Fossem-no, uma escala binária, um compasso maniqueísta não poderia medi-las, assim Um par não se complementa conforme o usual As coisas existentes subdividem-se, passivelmente, em mais de duas frações Equivocou-se quem argumentou ser o homem o molde matricial de todas as coisas O senso comum utiliza a medida-casal

A humanidade centraliza valores precisamente binários, meu chapa Prioriza a doisificação Outro deslize Uma medida binária não pode medir, pois simplifica, imprudente e dolosamente, a vastidão de variáveis asseguradas pela infinidade que descentraliza até mesmo a noção de base Irresponsabilidade doisificar Nem um ser humano (unidade) sequer dois deles (binariedade) são matrizes das coisas Não há uma mera medida (antropomorfização) ou duas (heterossexualização) e sim três quatro dez mil medidas disponíveis para as coisas dispostas Há duas cinco quinhentas medidas das coisas; coisas das medidas; coisas das coisas; medidas das medidas

Não pode haver detrás de toda a trajetória-púlpito do judaico-cristianismo um deus diverso de uma mente negligente e conivente e por isso malandra Difícil apurar se sou tolo por me considerar consciencioso quando invoco alguém ou um boçal justo por eu não ser esse mesmo ser invocado Uma grande certeza generalizada é a própria ignorância que me conduz a tão distante para tão pouco

O principal problema religioso está no fato de delegar atributos funcionais estrita e necessariamente humanos a deus, por exemplo, exigir dele o reconhecimento do semelhante Identificar-se, conviver com o semelhante

Não há uma verdade absoluta, há, aqui? Havendo-a, esta seria uma unidade de convencimento genérico Diante do advento da fauna neopentecostal, doutrinas e templos de garagem simpáticos, resta-me conformar que tenho, no máximo permitido pelo otimismo, um enorme rol de verdades meramente hipotéticas e dependentes do contexto originário Se houvesse uma verdade passível de total e eterna veneração, por que ela, esta mesma verdade, preocupa-se em prolongar a exibição de tantas facetas, e não expressões faciais impressas num mesmo rosto? Se há uma fórmula infalível de conclusão, quem ou o que esclarecer-me-ia a necessidade progressiva de perfilar tantas versões ambivalentes todavia em constante discrepância? Enquanto as explicações se confrontam, excluem-se Por causa da engenhosa incoerência onírica se complementam O termo absoluto não admite variações, pois se varia diminui, se diminui distancia-se de onde está o que é A natureza absoluta de uma coisa, quando sujeitada à variação, sofre uma agressão depreciativa O absoluto encerra-se em si, em torno do próprio eixo

O que pode ser pior Assédio político ou religioso? Afinal, subsiste alguma diferença que não seja sutil? Um nacional interferir nas questões internas de um estado estrangeiro soa tão invasivo quanto a ovelha mecânica, despersonalizada, de portemporta, determinada a inculcar sua macia auto-limitação em quem a recebe A ovelha não tem coragem de enfrentar o lobo, porque aprendeu com desvelo a temer a figura de seu pastor A ovelha deitada ao lado do leão sai ferida, pois antes agride a ordem natural ao exigir mansidão da fera A ovelha sofre agressão do leão porque seu pastor garante o contrário O pastor não perturba a fera quieta: usa seu rebanho e observa o abate na sombra distante A fera é quem manda no rebanho, não quem o ataca O leão só ataca o rebanho porque sabe que por trás dele esconde-se a verdadeira fera O leão ataca a ovelha porque sente nela o cheiro de outro leão A diferença essencial entre a ovelha e o leão é que a ovelha não conhece a fera e a fera conhece a ovelha O rei da natureza tem o instinto predatório, a fofa ovelha o de ser predada A vilania parte de quem faz questão do abate e sobrevive para acusar quem não pode recusá-lo

O devoto, ao se dedicar com integral fervor à atividade de vender o manual prático de libertação, abre margem à invenção de mais um deus chancelado pelo pastor O cristianismo deixou de ser classificado como expoente do monoteísmo, pois tem o vício de clonar um mesmo deus na medida que protesta uma mesma fé O cristianismo edificou um panteão lotado por variações de um mesmo deus matricial

O que se aduba com merda de ovelha apodrece do mesmo jeito

Escuta Se, debaixo da bigorna ditatorial instaurada em seu território, e escorado numa deliberação de responsabilidade social, proíbem livremente a liberdade e autonomia de imprensa, a religião, sob a figura de seu exegeta, esmaga através da autocensura ao incutir a infalível punição, sempre iminente ao inocente, de quem contestar suas cláusulas contratuais

Ovelhice Todos querem compartilhar a verdade com sua comunidade, mas apenas oferecem códigos e sanções hipotéticas pré-fabricadas na oficina improvisada dentro da própria garagem – com a enferrujada parafernália de eficácia duvidosa emprestada pelo vizinho A religião, bem antes de exibir sua fachada industrial, com direito a letreiros lasveguianos e logomarcas robustas, colecionava fórmulas de origem caseira, muitas vezes descobertas ao acaso e sem nenhuma utilidade elementar A religião não agrega mais valor a deus que os instintos A tentativa religiosa não consegue condensar caminhos para transpor uma crise se ela própria experimenta uma crise maior Logo, a religião peca por ser provisória – e por não ter consciência disso Ela não consegue acompanhar o ritmo das crises as quais não cabe a ela prescindir Quando olho para o visor do relógio, raramente ele marca um horário redondo Assim uma crença se apresenta e se afasta de mim Doutrinas cobram caro pela confortável viagem, contudo não levam o passeante para além do pedágio O paraíso é aí Carregado de maçãs de plástico

Olha só

O homem tem o dom de atrapalhar o descanso do que não existe