30/07/2009

Ao fim de um dia

Permitam-me, deixem-me que eu apresente Maslav Daslov. Um obscuro funcionário de uma repartição ministerial. Vinte anos de serviço, nenhuma promoção, nenhum êxito digno de nota. Calvo, baixo, quadrado, de grande barriga, fato cinzento, peúgas passajadas, vida cinzenta, futuro irremediavelmente cinzento.
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Uma noite*, meteu-se-lhe na cabeça que queria mudar de vida. Não podia suportar, por mais tempo, a sua amorfa existência. Decidiu tomar uma atitude radical e, com uma luzinha nos olhos, pensou num grandioso plano. Ora, o plano era a tal ponto brilhante que todo o sangue do coração lhe subiu à cabeça e um suor frio deslizou pela testa.
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Assim, na manhã seguinte, entrou na repartição e desatou a morder ferozmente os colegas, um após outro. Fincou os dentes nos braços, pernas e orelhas de telefonistas, secretárias, contabilistas, assessores, porta-vozes, relações públicas, engraxadores e assim por diante, acompanhando cada mordedura com terríveis e agudíssimos uivos. Mas Daslov não se limitou aos níveis inferiores da hierarquia, também mordeu o chefe de secção no nariz e deixou dois dentes pregados na canela do director. Estava lançado; nada nem ninguém o poderia deter. Finalmente encontrara a sua vocação, um modo de vida bem sucedido.
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Os resultados do plano superaram de longe as melhores expectativas. Ao fim de um dia, tinha mordido todos os colegas, era o funcionário mais respeitado da repartição e a sua fama galgara já as mais imprevisíveis barreiras. As altas chefias desceram dos largos gabinetes para o felicitar com um sorriso do canto direito ao canto esquerdo da boca. Foi automaticamente promovido e recebeu ainda uma gordíssima bonificação.
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Mas não terminou aí, como é de presumir, a história de Maslav Daslov.
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* A noite estava quente e húmida, e as copas das árvores flutuavam pesadamente como candeeiros mortiços. Creio que isso determinou os factos subsequentes desta história.
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(Do blogue de Rui Manuel Amaral).

29/07/2009

Trístico


(da série Engavetados)

Dois tapas: um no branco no preto e outro no preto no branco

Constranger-me-ia sentar à mesa com tanta gente detentora de elevado padrão de vida. Não que com isso ateste experimentar um agachado status, mas porque não vislumbro idoneidade de minha parte para distinguir um padrão de outro. Não me compete. Imprudência delegar a meus juízos a tarefa de manifestar orgulho ou vergonha, seja de qual for o padrão de vida, se detenho em meus domínios um padrão de morte vigente.
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Um homem comporta idéias; um corpo, casulos. Grandes idéias não se comportam. Cada um com sua idéia larval aspira à patente da mariposa, embora não consiga ir além do pó nocivo pousado em suas asas. A mariposa voa e ao mesmo tempo transporta a conseqüência tóxica que reveste e hidrata suas asas. Só sobe se aceita levar o veneno a cair dos céus – sobre os olhos dos que não voam além do que vêem.
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(da série Engavetados)

28/07/2009

Testamento

Nasci do enlace safado entre a poeira e o mofo Mas não em virtude duma genealogia sacana tentei dedicar viçosos suicídios O inaugural, inclusive, ocorreu quando, nascituro, afoguei-me em vinagre amniótico Mesmo no pós-útero mantive-me leal a um sem-número de investidas! Soçobrava, emergia, cabeceava bolhas, e diretorreto uma vertigem não menos zombeteira do que filha da puta, no múnus de anjo prontificado pleiteando uma pena a mais, retirava a tempo o que de mim boiava por sobre aquela bílis Recordo também do impulso com o qual pulei dentro da sombra e, como era e foi pra ser, falhei na decadência Escolhi a sombra errada (sem fundo, não parei de cair: pior que estar no fundo do poço é estar no poço sem fundo e sem eira nem beira que não beire nada além da loucura); em contrapartida, aprendi a apreciar o quanto apraz a sensação escorregadia de vida inerente ao ato de esboçar testamentos Eu, o de cujus sucessione agitur, lego o que neste consta ao primeiro punhado de vermes que a luva bacana da medicina legal flagrar domiciliado na derradeira massa fujona Ratifico: uns únicos parasitas embaraçados haverão de herdar tudo! E, apesar desta generosidade macrocósmica e inconteste, os diminutos beneficiados ainda praguejarão, pública e ingratamente, pra que todo o inferno e dissidências ouçam e não me acolham, sob a alegação de que fui um ordinário objeto da semiótica, deixando aqui ossatura que não cheira, não fede, e nem o que da língua escorre, gruda ou arde
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(da série Engavetados)

25/07/2009

P R O C U R A D O
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RECOMPENSA A NEGOCIAR

Delirium tremens

Socorro! Degolar-me-á a compulsão
Que se ruma sentido ao Álcool enjaulado.
Assim sendo, prostro-me: com pus hão
De celebrar, tu e esse demônio ao lado.

Trêmulo. De Satanás o sangue mui
Apraz: bebi-o, e vomitei uma alma viva.
A lasca de Rocha* a um Pedro, que rui,
Pra incrustar o exorcismo, é tempestiva?

Socorro! Credulidade sã, inconsútil...
Bebe, mas invoca a Onipotência útil,
Que quebre a tempo esta herança.

Maldito o cálice com veneno tinto!
E sê cerceada de todo solo, recinto,
A videira próxima à minha criança!
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(da série Engavetados)
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*atinente, também, à minha filha tão estimada e bem-vinda, e à sua genitora, haja vista que ambas têm o sobrenome Rocha.

Balada melosa

Deglute a pica suja até o caroço
A desdentada com bafo de bosta.
Lavar os seios com porra ela gosta:
A cafetina, molestou-me moço!

A glande enforca na corda vocal,
Na garganta arrombada com mijo.
A leprosa fétida com hálito fecal
Sorri quando se lhe enfia o braço rijo.

A vagina da Poesia – noviça nociva! –
Há de ser fervida em sêmen ácido,
Causticando seu ponto gê flácido:
A desgraçada me pariu com vida!

Introduza todos inimigos no cu dela.
Enfie santos, demônios – tudo soma.
A vadia que engoliu minha goma,
Transpira e exala o que mela.


(da série Engavetados)

19/07/2009

Desmonte

Em sua fábrica inacessível
Deus – após reiteradas tentativas –
Montou o primeiro humano
Que logo aprendeu
A fazer o segundo
Que por sua vez
Construiu o terceiro (estragado)
Que (abandonado na sucata)
Improvisou uma perna manca e rastejou
Rumo ao inferno mais conveniente
Lá erigindo a própria fábrica
De desmonte de deuses
Perfeitos.



(da série Engavetados)

04/07/2009

Frontal

Morrer é acordar
Dentro em sonho
Ou dormir sobre
O ombro pontiagudo
Do pesadelo.


A fadiga, discreta,
Cochicha, em latim, à persiana
O anoitecimento do ofício.


Morfeu escuta e acorda,
Revigorado,
Sem lembrar
O que sonhou.


O sono
Configura a censura
De um mundo gêmeo
Pelo outro.


O sonho e a realidade
Se unem umbilicalmente
Mas ambos desconhecem
O que os nutre.



(da série Engavetados)

Vade

Misericórdia, Satanás,
Pois deus sequer se arrependeu
De atos blasfematórios maiores
Tampouco de incitar
Ereção nos pequeninos.


Misericórdia, Satanás,
Porque deus acareou
Vossos serviçais pelo dorso
E assoprou o clarim anunciante
Sem purgar o fôlego anal.


Misericórdia, Satanás!
Ele imitou tão fielmente Vossa voz
Mas acatou regras a todo tempo
Levando à danação o curso evolutivo.


Misericórdia, Satanás,
Pois ele hesitou em enfiar
O seio flácido da maternidade universal
Por entre os próprios passos:
Os que, trêmulos, equilibram
O animus necandi umbilical.


Graças a deus, Satanás,
A dessemelhança
Entre o bem e o mal
É um crime sutil.


Mas
Vade retro, Satana,
E nunca mais aconselhai
O vosso deus a me exorcizar.


(da série Engavetados)

02/07/2009

Nsc

Cansei de percorrer por aí
Seguindo rastros de mundos.
As placas norteiam, ubíquas,
Que estou em sentido contrário.
Ora. Não almejo senso nenhures
Sequer acredito em sinalizações:
Placas só me convencem
Para o apedrejamento.


Não me cativa o onde
Para onde elas apontam.
Placas são para os que seguem
Caminhos por fora.
No átimo azado, não sigo – cego.
Aprendi com os atalhos
Que me seguiam
E se perderam.


Um dia me vi me vendo.
Retenho certeza
Porque ainda estou cego.


Ambigüidade
É pecado da luz.


Adentrei a exclusão.

Palavra minha,
Embrião de demônio mudo;
Silêncio meu,
A rubra pata
Do latido mártir
Que perdoou a poesia.


(da série Engavetados)

01/07/2009

Epônimo

Sou o resultado do fato feito ato. Díptero detrás do lóbulo bíblico e à frente de LaVey. Ghostwriter de menus e co-tradutor de Paracelso (original) para o guarani-iorubano. Guardo Derby extra-forte em caixinha de Marlboro Light, portanto prefiro fumar lightsticks sem filtro. Com 5 anos de idade venci um concurso ao desenhar Gene Simmons declamando Arkadii Dragomoshchenko. Em vez de escrever 'ao invés' uso 'em vez'. Batizei minha iguana de Ayahuasca enquanto servia chá de lírio transgênico ao meu peixe betta splendens. Sei todos os algarismos de meu cepeéfe de cor, embora não tenha a mínima noção do paradeiro de meu chip RFID. Recebi o PASEP e uma traição conforme combinado. Utilizo arnica para cicatrizar xícaras trincadas. Alguns ETs contestam minha existência. Roo unha do pé (dos outros) quando me lembro que sofro de ginecomastia blenorrágica. Sou bom marido de morenas infláveis e inflamável quando não inflam. Sóbrio não, sem beber: meu Hi-fi = Sci-fi. Inventariei a lucidez pros vermes. (...) Quem vive dela é a funerária e/ou. Sou o instável resultado da rixa entre pirotecnia forense socialista & minimalismo tântrico individualista.