20/07/2007

Esgoto escarlate

Faço saber que o congresso nacional não o sabe, mas decreto e sanciono a seguinte com respaldo nas prerrogativas e poderes maneiramente constituídos (...) a mim confiados

Artigo 2.007 – esta prescreve medidas anormativas para repressão ao fabrico, autorizado ou não, e ao comércio lícito de religiões, doutrinas, seitas, mesas redondas, rodas e adesivos (VETADO)

Por ora:

I – evito sim aderir a qualquer religião, pois desconheço alguma que não crucifica a liberdade intelectual

a) seja a curto, médio ou a longo prazo a aparição dos primeiros sintomas, a religião pode designar uma crucificação intelectual degenerativa, progressiva e irreversível

II – aderisse a uma doutrina religiosa, na certa eu seria uma amazônica fraude, porque segundo meu parco arrazoado, ser religioso significa assumir sua religiosidade com autenticidade, lealdade devocional e coerência policiante, e tal decisão, a rigor, incondicional, culmina na aceitação de todas as privações inerentes à adesão religiosa

III – minha bunda se esforçou, mas não consegui me acomodar aos bancos rústicos de pau jesuíta

IV – meus joelhos tentaram, mas não consegui me ajoelhar: os tapetes muçulmanos esfoliaram as rótulas, e os muçulmanos se ajoelham para meca e ofertam a bunda para o ar, mas (vai entender) apedrejam em praça pública a bicharada

V – empenhei-me em curvar a cabeça, mas fui expulso pelos ortodoxos por me negar a encostar minha fronte no muro das lamentações (injustamente, ora, pois assim evitava o desgaste da obra tombada dos grafiteiros locais)

a) recuei dois passos e persisti civicamente a abaixar a cabeça, contudo foi surgindo um hematoma no meio do meu peito, de tanto meu queixo pontudo tê-lo pressionado, isso sem citar a dor na nuca e a coceira causada pela barba piolhenta do essênio bem atrás de mim (o que por sinal não foi de todo ruim)

b) lamento, marcelo d2, mas só agora que decolei para o brasil, num airbus a-320 da tam, lembrei-me de ter esquecido teu baseado enfiado no muro das lamentações

VI – se deus vê tudo de seu não-lugar, para que chamá-lo milhozentas vezes e em que alcunha for, haja vista que qualquer um do povo se prontifica a socorrer o emergenciado, a seu alcance, sem ser chamado

VII – há quem afirme, com eloqüência aiatolakhomeínica, que o descrédito alusivo à necessidade da existência dum deus, suprassemprezelador, leva o homem a chafurdar na seguinte cilada: acreditar que ele [o homem-humano] proclame sua própria onipotência

VIII – se deus não faz pelo homem o que este pode executar sozinho, resta infirmar que deus nunca interveio ou intervirá em prol da vida humana (ou da própria vida), considerando a hipótese de o homem, sozinho, ter aprendido a matar e matado deus, tirando nota 10, inclusive

a) o homem é tão independente de deus, que o matou sem ser por este mesmo deus interrompido

IX – deus não ressuscitou; as religiões e afins sim

X – grande coisa um deus, dotado de todos aqueles atributos, ter multiplicado pães e peixes: o padeiro faz tal milagre; os peixes se multiplicam por conta própria, isso sem levar em conta o fato de o homem também se fazer multiplicado sem ser deus

XI – para que deus? basta a natureza se incumbir de desincumbi-lo

XII – e se bíblia-corão-torá fosse mesmo sagrado, inspirados por um deus cordato, deveria ter imunidade contra as deturpações, o machismo e a selvageria

a) se quem registrou tais textos foi um canal direto, e sem rachaduras, de um deus límpido, de onde e como escoa tanto esgoto escarlate?

XIII – norteei tanto o desvio de anjos e deuses, que tenho a sensação de voar tal quais

XIV – estar no interior duma mesquita ou sinagoga é mais perigoso que estar no meio do fogo cruzado entre israelenses e palestinos

XV – por hoje, assim como montesquieu reprovou a conduta de quem não aproveitava o conhecimento apreendido, colocando-o em prática, recuso-me a crer na existência dum deus que menospreza o benefício de suas infindáveis aptidões, virtudes eteceteretices

XVI – sustentar uma tese favorável à existência ou inexistência dum determinado deus soa tão imaturo e modorrento quanto dizer que ninguém nunca esteve ateu, mas (...)

XVII – a religião deforma a opinião e tortura o bom-senso assim como a farda modela o corpo de quem reza para o cacetete atender sua prece

XVIII –

Parágrafo único

11 comentários:

Anônimo disse...

Você sabe que minha religião é japonesa. Que tenho um lance lá. Mas seu texto é pertinente, é uma crítica bem feita e com fundamentação sim. O lance é que somos livres. E a religião elimina a liberdade. Pra um cara genial e brilhante como você é phodddddda isso, eu te saco brother.

Outro nocaute seu, com um jab rápido e mortal.

Anônimo disse...

Excelente texto, Ricardo!

L. Rafael Nolli disse...

Cara, Marx disse tudo: religião é o ópio do povo! Gostei da lei e espero vê-la sancionada muito em breve, sobre tudo por vivermos num país que é dito laico - mas que não passa de uma república católica e afins. Interessante, Ricardo, pois raras vezes - como comentei contigo um dia desses, num desses encontros casuais - as críticas a religião se estendem as demais seitas. Sempre se fala muito (e com razão) da Igreja Católica, do Papa e suas absurdas idéias medievais de voltar a coisa toda para o latim, mas ninguém se dispões a por em jogo as demais religiões, as demais seitas, etc e tal.

É isso. Olha, mude o detetizador. Ainda tem pernilongo por aqui. Baigon é um dos melhores que conheço! Experimentei, com gelo e limão, um dia desses!

Unknown disse...

O sarcasmo é mesmo uma das maiores dádivas que conheço. É o refinamento máximo da maldade em aliança com os extremos da inteligência crítica. Obviamente, estou vendo uma ponte literária entre o texto mostrado e as opiniões do Marquês de Sade na sua filosofia na alcova. Enfim, é um texto de observações pertinentes, instigantes, brilhantes e redigidas com muito bom humor! Parabéns!

Ricardo Wagner Alves Borges disse...

RECADO A UMA AMIGA-LEITORA AMADA E SINGULAR:


Aproveitei da tragédia humana
Que sempre existiu e há de existir, inevitavelmente,
E não do sofrimento daqueles.


Mas te entendo, minha querida.


Não tive a intenção de ignorar o sofrimento dos passageiros e familiares, mas vejo a possibilidade (e não só eu, já assistiu A VIDA É BELA? Pois é, o diretor/protagonista conseguiu ver humor no genocídio) de opinar por outros ângulos, por uma questão de sobrevivência, e não ir pela via do sensacionalismo.

Querida:

Você resvalou até cair no fosso da distração, vejá só.

Não vislumbro explorar gratuitamente,
Custe o que custar,
O humor nas tragédias
Nem as tragédias no humor.

Se você provar que fiz referência direta ao vôo 3054,
Que saiu de Porto Alegre com destino de pousar em Sampa,
Prometo nunca mais entrar num avião (da TAM, aviso desde já!).

Observe bem que minha crítica abarca
A deficiência
- com a qual já até nos acostumamos -
Dos aeroportos e meios de transporte aéreos brasileiros,
E não foquei o tal desastre, repito! 09:13
(0 minutos atrás) apagar

Ricardo:
Em momento algum mencionei o vôo 3054,
Apenas me limitei a dizer que estava
Dentro de um avião igual, da mesma fábrica e empresa,
E não dentro daquele avião que sofreu pane
Ou seja lá o que for, em Congonhas.

Veja que escrevi que havia decolado
Num avião da TAM,
Mas que saiu da Palestina/Israel,
E não de Porto Alegre com rumo a Congonhas:
Ou seja, embarquei noutro vôo,
Mas corria o mesmo risco de sofrer um acidente,
E foi esse o recado dado ao leitor.

Resumindo: viajando em avião brasileiro (ressalte-se, da TAM ou da GOL),
Podemos correr risco de vida,
Nisso se baseou meu texto,
Inclusive, acresço que o menos (ou nada) importante no texto
Foi o ponto em que falo do Airbus A-320.

Veja sempre todo o contexto.
Critico as religiões.

Concordo contigo que o humor negro tem limite:
Ele termina bem no ponto
Onde pode se escurecer mais ainda.

No mais, aposto que em breve a galera do Casseta e Planeta
Vai tirar uma onda da tragédia, escute só!

[Sou fã de Glauco Mattoso e não é à toa, pois, como tal, também zombaria (e zombo) de minha(s) própria(s) cegueira(s), deficiências, traumas e desgraças].

Tudo por uma questão de so-bre-vi-vên-ci-a.

Ricardo Wagner Alves Borges disse...

RECADO A UMA AMIGA-LEITORA AMADA E SINGULAR:


Aproveitei da tragédia humana
Que sempre existiu e há de existir, inevitavelmente,
E não do sofrimento daqueles.


Mas te entendo, minha querida.


Não tive a intenção de ignorar o sofrimento dos passageiros e familiares, mas vejo a possibilidade (e não só eu, já assistiu A VIDA É BELA? Pois é, o diretor/protagonista conseguiu ver humor no genocídio) de opinar por outros ângulos, por uma questão de sobrevivência, e não ir pela via do sensacionalismo.

Querida:

Você resvalou até cair no fosso da distração, vejá só.

Não vislumbro explorar gratuitamente,
Custe o que custar,
O humor nas tragédias
Nem as tragédias no humor.

Se você provar que fiz referência direta ao vôo 3054,
Que saiu de Porto Alegre com destino de pousar em Sampa,
Prometo nunca mais entrar num avião (da TAM, aviso desde já!).

Observe bem que minha crítica abarca
A deficiência
- com a qual já até nos acostumamos -
Dos aeroportos e meios de transporte aéreos brasileiros,
E não foquei o tal desastre, repito!
Em momento algum mencionei o vôo 3054,
Apenas me limitei a dizer que estava
Dentro de um avião igual, da mesma fábrica e empresa,
E não dentro daquele avião que sofreu pane
Ou seja lá o que for, em Congonhas.

Veja que escrevi que havia decolado
Num avião da TAM,
Mas que saiu da Palestina/Israel,
E não de Porto Alegre com rumo a Congonhas:
Ou seja, embarquei noutro vôo,
Mas corria o mesmo risco de sofrer um acidente,
E foi esse o recado dado ao leitor.

Resumindo: viajando em avião brasileiro (ressalte-se, da TAM ou da GOL),
Podemos correr risco de vida,
Nisso se baseou meu texto,
Inclusive, acresço que o menos (ou nada) importante no texto
Foi o ponto em que falo do Airbus A-320.

Veja sempre todo o contexto.
Critico as religiões.

Concordo contigo que o humor negro tem limite:
Ele termina bem no ponto
Onde pode se escurecer mais ainda.

No mais, aposto que em breve a galera do Casseta e Planeta
Vai tirar uma onda da tragédia, escute só!

[Sou fã de Glauco Mattoso e não é à toa, pois, como tal, também zombaria (e zombo) de minha(s) própria(s) cegueira(s), deficiências, traumas e desgraças].

Tudo por uma questão de so-bre-vi-vên-ci-a.

mariza lourenço disse...

ai, complicado demais comentar esse texto genial, RW. fico entre a cruz e a caldeirinha. mas que é bom, é. absolutamente pertinente. você cresce aos meus olhos. não tem jeito de ficar imune.
(agora arranque a pinta, faz favor... hehehe)

Unknown disse...

Sei que isso não é confessonário, mas fazendo do direito ao livre esforço. Reitero a religião reprimi a sociedade sexualmente. Isso aconteceu comigo. Abraço! Marcelo

Paulo Castro disse...

Vc deve desconfiar em algum lugar do seu Isso que eu, mais que ninguém ( prepohipertense) tentei ser religioso. Até pensei em ajudar à montar uma Igreja aqui no Brasil. Mas por que montar uma com outras tantas já aí ? Claro, pra ser Papa e bem sábio substantivo feito verbo.
Mas como aceitar arrancar os olhos preferencialmente a ver o pecado ?
Entre outras coisas.
Mas se existe um Reino dos Céus, ele está destinado APENAS aos não religiosos e a História dá motivos de sobra pra tal afirmação.
E sobre tirar sarro ou não da tragédia: Me diz aí, dona Tola, o que mais fazer sobre a tragédia ? Entre uma e outra a senhora vive no esquecimento da morte ?
O riso é a única coisa que não se esquece do inalienável. O riso é a única vitória. E por isso mesmo, ele é anti-relegioso. Sacou ou tá difícil Dona Pílula ?
Eu digo pro mundo e pra morte, então: "Pare de tomar a pílula que ela não deixa nosso filho nascer", sendo o filho não do Homem, mas do Mal, da Ironia, do Sarcasmo, da Lei de Maldoror .
E tenho dito.
Bom serviço, Dona Boa Intenção e Boa Cama e Mesa, e limpe bem nos cantinhos da bodega ! Ou desço-lhe o chicote, negrinha...
°

Anônimo disse...

Otimo texto, querido... como sempre.
Dona tola, que coisa mais criativa!Tão criativo quanto rir da desgraça alheia. O riso da dor não é anti-religioso, é muito mais. É falta de compaixão.Moralismo? Não, Senhor Dono da Verdade, constatação. Tolo me parece quem consegue um riso vazio vindo do que não tem graça.
A intenção continua a mesma, a cama está boa, a mesa igualmente e os cantinhos, bem limpos.
Guarde teu chicote para quem solicitar.

Ítalo Ogliari disse...

E aí, Ricardo, beleza? Também dei uma espiada por aqui. Legal mesmo! E sobre o livro, ainda não sei como vou publicá-lo. Vamos ver o que acontece.

Falou, rapaz.
Um abração
Ítalo