20/02/2007

Charles Bronson

A quem é do tempo do divã


Dane-se Mereço uma cruz de malta no peito Acabo de acertar o gato Bem na cabeça Ele nem se contorce de agonia Grudo no muro o bicho que mata, desumanamente, dezenas de pardais e ratos Ele não se apieda de calangos nem de baratas, de grilos nem de formigas Tanto faz Caça e mata o que vê pela frente Até ração canina o animal ataca Jogo nele uma baita pedra mais concreta que o próprio fato Bate e não quica Todo mundo da rua aqui reunido, encantado com o regaço da pedrada O melaço imprime-se na pedra de tal maneira, que forma uma pintura rupestre Nada vai remover a mancha Quando seca, parece um achado arqueológico paleolítico A galera pensando alto, segura o malvado contentamento nos lábios quando o dono do gato chega O choramingão desmancha a roda

Toco a campainha na casa do guri do gato Sua simpática mãe atende e explica ele está lá no quarto ouvindo som, bate lá Sigo e vejo um expressivo pôster duma banda de metal afixado no lado de fora da porta Os cinco ferozes guerreiros medievais posando de cueca, não bastasse os cabelos compridos desgrenhados estilo franjinha playmobil Aberta a porta, dou de cara com um pôster do herói milionário da boca pelada Ele veste pesada cueca preta sobre calça de aeróbica cinza, deixando saliente o volume do heroísmo Trouxe seus joysticks, toma aí, obrigadão e... Não há clima pra eu estar ali muito menos para ele querer que eu permaneça Quando penso virar as costas, escorre o gelado Sua mãe me quebra um ovo na cabeça e me belisca o braço como se girando a chave na ignição Engulo susto-gema-clara e saio cabisbaixo O solo de guitarra abafa o caso

O crânio tem o mesmo formato da pedra que a amassa Estrago o bichano, uma lição pra valer Morte instantânea Chega à minha cabeça a idéia de fazer um paté daquilo Nem o sangue se mexe, embora o pessoal saiba, no íntimo, de seu implacável dom de regeneração E não é que o fedaputa reage e recomeça? Agora morro eu, de inveja do animal Ele tem uma formidável experiência pós-morte guardada Consegue funcionar, apesar de cambeta e com o olho estufado, resultado provável duma gambiarra sobrenatural Vai precisar de um zoofisioterapeuta competente Seu dono o pega no colo, sem se preocupar com o melaço na camiseta Afastam-se os dois Desmantelam o decepcionado e atônito círculo O semigato ronrona vingança, traduzida nas breves palavras proferidas pelo bocó do dono

A pedra, alma-gêmea, atinge sua cachola, encaixa-se bem nela Encontra enfim sua cara-metade Aquela cabeça felina é concebida somente praquela pedra, só pode Aquilo entra na cabeça do bicho, mas não na cabeça do dono O garoto não crê no estado de seu xodó, apesar de colecionar discos cujas capas-encartes tematizam cenas-tripas de dar gosto, um luxo só Nada vai consolá-lo da perda do transmissor de toxoplasmose de estimação Um quarentão, se ajustada a sua idade ao ritmo humano O bichano deixa ali a fauna para representar a flora, ou seja, seu crânio parece uma gorda goiaba prensada, papinha pronta para o consumo infantil Falta a colher para saborear a polpa da fruta A rua inteira a par da situação Justiça seja feita Ele merece a sanção máxima Charles bronson não erra Mata canários belgas e um curió, de fora da gaiola Mija no jornal de meu cachorro quarta-feira Desfia a paciência na mesma data

Dou-lhe um tapa nas costas O empurrão estabanado quase o joga de testa contra a parede chapiscada A molecada, de praxe, pronta pra aplicar o trote Ele tenta escapar, mas lhe passo uma rasteira Cata cavaca por uns cinco metros Daí o pego pela gola e seguro firme, enquanto despejam farinha, pó de café, catchup, mijo e ovo choco Se o pai dele pudesse, com certeza lhe daria um abraço, mesmo nestas circunstâncias Derreteria-se de orgulho, pois além de completar dez anos, seu único filho obtém aprovação na mais difícil escola da região, sem nenhum vermelho O mais homogêneo boletim da terceira série Ele chega em casa ic lambrecado e ic ic soluçando Sua mãe pergunta o que houve O menino só consegue explicar quando ela lhe estende um filhote de gato

5 comentários:

nosbor.araujo disse...

que pegada em mano,gostaria de um destes no meu romance que já tem uma orelha do evandro affonso ferreira,ele é dai tambem né?

Anônimo disse...

Ha ha ha ha. Muito bom !
Mesmo que sempre esteja beirando a escatologia, você consegue reger com classe e dinamismo. Equilíbrio perfeito. Gosto muito das imagens que constrói em minha cabeça. Qualquer hora, afano algo seu (com sua permissão, claro...)
Parabéns !
abraço. Keep me posted ;)
Alexandre

Anônimo disse...

ricardo,
você é foda, phodda!!!

Anônimo disse...

...e começa tudo outra vez. De úm fôlego, só entre sorrissos e porquês.
Parabéns =D

nosbor.araujo disse...

ié,gosto que me enrrosco!!!