20/08/2006

Algumas razões da apostasia

  1. Tive a caligrafia bonita. Cada signo alfabético era delineado qual adorno de portão cemiterial. Fui desenhista. Naquele tempo dormia na rua. Minha genitora não admitia o entremeio, no colo de seu apartamento-capela, sequer de um debate ameno, em família, alusivo ao repertório vero-vasto apregoado pela mitologia católica. Tudo-tudo-tudo, em rito sumário, era denominado blasfêmia. Participei de terços calado, o que configurava motivo-pressuposto favorável ao deferimento de minha excomunhão da sala. Não me era permitido andar com gente espírita. Minhas namoradas deveriam proceder da porra dum mesmo Pai romano. Fodia uma kardecista – de pirraça –, a qual me rendeu alguns vexames, sonos na rua sob chuva colérica. Não podia não ser católico. Não podia me aproximar de um não-católico. Não podia estar em mim.
  2. Descobri a filosofia quando cabulava o 2º ano científico na biblioteca pública. Minha genitora, sabendo dessa inclinação, apresentou-me alguns padres existencialistas, leitores de Álvarez de Azevedo, bebedores de Kronenbier. Padres seriam amigos, nortes ideais. Um deles, cônscio de que eu era órfão de pai mundano, molestou-me, sob o argumento de que supriria a ausência do marido de minha genitora. Fui aluno bolsista de sua instituição de ensino. Graças à generosidade do padre e argúcia materna. Gostei daquele colégio. Só não gostei do padre roçar meus pentelhos co’a mão suja de giz; chupar-me com a palavra de Deus donde escorria Pomarolla. Aquela mesma boca salivava Gênesis, Coríntios, Efésios, mascava a Virgindade-Pão do Nazareno... Bobagem! Ele agiu eivado de boa-fé. Só queria suprir a ausência do marido de minha genitora.
  3. Em tenra puberdade, recolhia-me num pichado casebre bem ao lado do despotismo materno. Fingia dormir enquanto gente trepava sob o ímpeto do crack. Fui coagido pelo Espírito Santo a execrar camisetas pretas, cedês, postêrs, brincos, braceletes fundamentais à composição da imagem do headbanger caipira. Os adereços adquiri com dificuldade. Naquele tempo era office-boy. Itaú. Caixa. Bradesco. Mictório público. Com o primeiro meio-salário providenciei um walkman o qual até hoje devo. Nunca fui bom em saldar dívidas nem promessas. Confessei que cessaria ad infinitum as punhetas. Gostava de me masturbar no banheiro do chefe. Extasiava em arrancar bosta da secretária eletrônica. Gostava de ouvir Exorcist nas filas bancárias. Esforçava-me para suportar idosos à frente, atrás, ao lado, abaixo que, inoportunamente, centravam o olhar baço direto em minhas argolas. HSBC. Unibanco. Real. Boteco. Nas filas, não raro havia um velho gaboso em ser reto, honesto, bisavô e eleitor. Eu não conheci avô-avós, mas com 16 anos me deparei com a velhice. Quase sempre um salientava ser reto. E não à toa eles tinham cara de cu.
  4. Idosos bem sucedidos têm o hábito de ensinar o hormônio a viver. Confundem idade cronológica avançada com maturidade vivencial apreendida. Caricaturei alguns mestres idosos. Preferia nanquim. Empunhava com precisão esgrimista uma pena. Preferia uma extraída do reto de querubim a uma doada pela harpia. Nunca imaginei escrever. Nunca pensei deixar de desenhar. Hoje sofro de delírio paranóide de cunho persecutório: o conflito me segue em todos os lugares-idéias. Um árduo conflito é sentar-se à mesa junto a quem rumina com a boca escancarada, em alto e bom som, e cujo palitar dos dentes soa mais escandaloso que o orgasmo de quem experimenta a Deus. Outro conflito é conviver com a advocacia, pois ela asfixia a liberdade inerente à criação artística, e não por se fazer inibida pela natureza ordenadora das leis, mas pela ineficiência destas. A linguagem jurídica (codificada ou não) é pobre em imagens. Ademais, e consoante, a Justiça é cega: confunde dedo com pica e reclama que a pica é fina.
  5. Agora aproveito o momento em que passa algo cômico na TV para rir d’algo realmente engraçado que salta em minha memória – sem que ninguém perceba do que realmente rio. Hoje tento despreocupar a esposa-magistrado que o cabelo inflamado no saco é uma verruga e não sintoma de DST. Hoje amo a mesma esposa a esmurrar a porta de wafer do banheiro, energúmena, a vociferar: “Anda co’a merda do banho!”, com a filhota: “Papai: deixa eu entrar que o cocô tá saindo!”. Assim esqueço aquele padre-pai e o ventre despótico da puberdade recente. Assim posso consolar minha ignorância laica por não saber onde finda a humanidade e onde inicia a divindade de Cristo – a fim de saber se Sua paixão faz jus ao honesto pranto devoto.
  6. Ora: a Carne onipotente suporta quaisquer cusparadas, sevícias, crucificações, destarte o Filho-Deus bancar a humanidade-mártir denuncia charlatanismo, fraude teatralizada com sangue AB. Um Deus reduzido a homem “capaz de ressuscitar” blefa baixo. Jesus guardava a carta-mor do baralho. Grosso modo, Cristo foi o primeiro masoquista ou o primeiro ilusionista. Masoquista não. Como avaliar a intensidade do sofrimento impingido (pelo Pai-Deus) ao próprio Filho-Deus, pois Quem criou a dor, conhece-a bem a fundo, intimamente, e conhecendo-a, doma-a, como ninguém? Suas miríades de cicatrizes se fazem dignas de suspeição. A tolerância de uma divindade à dor nunca equiparar-se-á à resistência de um homem no tocante à mesma dor. Subsiste uma discrepância infinita entre ambos, óbvio. O que uma divindade pode sofrer jamais implica o mesmo que um reles humano sente. Se Cristo fosse mero humano eu prostrar-me-ia cristão, e me enxugaria no Seu manto. Quando o Redentor ressuscitou Lázaro provou Sua divindade, mas quando morreu na cruz sofreu como um homem, por quê? Como sabê-lo? A um Deus, o sofrimento carnal pode tornar-se facilmente suportável, nulo, pois Sua tolerância à dor pode – e deve – ser perfeitamente imensurável. Conveniente afirmar que Ele morreu na condição de “mero” homem! Reitero: como delimitar a humanidade/divindade de Cristo, através do esquadro da conveniência, do interesse, da abstração cristãs? Só entendo que sentir pena de Deus soa ridículo, por mais próximo que Ele tenha se aproximado da descartabilidade humana, porque Ele “nunca” absteve-Se dos atributos divinais. Nunca foi um homem. Jamais pôde haver nascido como um humano Alguém gerado sem sêmen humano. Valho-me do preciso e cabal exame de DNA para corroborar se é possível constatar a paternidade “humana” de Jesus. Já eu fui sim concebido a partir da porra dum pinto! Cristo não. Logo, como louvar Alguém que despreza a serventia duma pica? Ademais, doutra ótica, o que o senso comum denomina Obediência (em se tratando do acatamento por Deus-Filho do Cálice estendido por Deus-Pai) considero o mais torpe filhocídio. Eu sou pai, e se amo minha filha jamais haveria de consentir com a mais ínfima lesão que se a sujeitassem, tampouco a ordenaria que se submetesse a tal. Jesus não morreu por nós – mas pelo Seu Pai. Jesus anulou a excelsitude da expiação quando retornou dos mortos, porque aquele sacrifício importava “perda”, in casu, renúncia absoluta da própria Vida. Ora: quem ressuscita anula a morte. Simulacro do Amor Alguém se permitir morto e em 3 dias ressuscitar... Falso Amor paterno impor humilhação extrema ao único Filho. Quem ama protege, zela... O Redentor zombou de nós. Emocionar-me? Em síntese, sacrifício consiste em transcender possibilidades, mas ao Deus ou Filho-Deus tudo é transponível. Humpf. Neste átimo, sinto-me sobremaneira consolado ao constatar que Jesus foi a personificação do alcoolismo – pois Seu sangue é puro vinho.
  7. No ano corrente, a convite da genitora, participei (da última meia hora do dia derradeiro) de uma missa perpetrada pelo Congresso Nacional da Renovação Carismática Católica, no Espírito Santo (estado-coincidência?). Lá, atrás de mim-esposa-filha, concentrava-se um pessoal tão petulante quanto visionário. Um deles cutucou o ombro de minha esposa, chamando-a ao cochicho. De súbito, durante a cerimônia-surto, a mãe de minha filha chorou a soluçar. A cotucante, que nunca nos viu antes, alertou-a duma tragédia: se eu não cessasse a ingestão de álcool ela perder-me-ia para sempre – embora Deus soubesse que meu problema há muito fosse o Verbo. Depois, o pessoal todo, uns 5, impressionou-nos mais ainda: explicou que estávamos eu-esposa-filha cochilando nas cadeiras porque Satanás não queria nossa participação naquela missa. Os presunçosos não sabiam que eu-mulher-filha havíamos viajado por mais de 16 horas de ônibus, sem pausa decente e sem dormir, e que dormíamos naquela cidade, no máximo, 4 horas diárias, durante os 4 dias de estadia. Eles não sabiam que aproveitamos uma carona objetivando conhecer a Praia da Costa (na qual todos nos divertimos e queimamos calorias bastantes – o que contribuiu mais ainda para o cansaço da turma), e não o Congresso. Eles teimavam que nossa exaustão era fruto de uma vontade demoníaca, mas jamais um fato-resposta natural. Tentamos dormir ali. Juro. Contudo os filhos da puta videntes não nos permitiram: o Diabo ali foi eles.
  8. Muito se fala que o ateísmo corresponde a uma conduta daquele que não aceita existir nada acima do ser humano, isto é, um comportamento megalomaníaco. Ora: mas por que não pode existir algo além do homem diverso de um Deus? A autêntica blasfêmia, passível de valoração, só pode ser proferida por um crédulo. Dita por um dito ateu importa o mesmo que uma pedra arremessada à deriva. Um ateu não pode sequer balbuciar blasfêmias, pois o objeto dela (Deus), no seu caso, inexiste. Lado outro, o teísta peca mais que o ateu. Enquanto o teísta espera o Deus omisso intervir ele exclui o senso de humanismo a nós intrínseco. O ateu dispensa o Deus e age a favor da humanidade, diretamente. O ateu não age mais em prol da humanidade que um teísta, mas muito mais que o próprio Deus onipotente, misericordioso. O ateu tem a caligrafia bonita.

9 comentários:

Anônimo disse...

RW adorei mesmo ! Eu tinha isso na cabeça mas a minha caligrafia bonita me impede de projetar o pensamentento. Vc pode , Vc o faz, e incrivelmente bem!

Anônimo disse...

Rapaz, muito bom mesmo seus escritos...Não sei muito o que dizer...apenas que eu gostaria de ter sua verve. Não deve ser a primeira vez que escrevo isso, nem será a última ! Continue assim, para o alto e avante !

Anônimo disse...

velho, tem muita pertinëncia seu texto. as vezes o ateu faz muito mais que o fiel. e mais, religiao vale a pena qdo deixa o homem ser livre de pensamento. sem dogmatismos. seu texto fala, grita e tens fundamento.
saudade sua seu maldito.
beijo.

Anônimo disse...

tem muito mais bondade no lado esquerdo do mundo que na turma da beatas...
com suas normas
seus princípios
e suas chatices
RW, muito bom este texto!

Nana Magalhães disse...

a gente fica sem ter o que falar depois de ler seus textos. acaba ficando repetitivo - como disse o alexandre - mas é a real. você é foda, ricardo... sempre melhor.

conheço algumas carolas que ficam na igreja - no banco lá da frente, o 1º, todas juntinhas - falando mal dos outros, comentando a vida do pessoal da comunidade entre uma ave maria e um pai nosso. e também conheço um outro pessoal, que passa longe da porta da igreja. são legais e gastam o tempo livre com trabalho voluntário numa instituição que acolhe população de rua. depois sai todo mundo junto pra tomar uma cerveja, ouvir música e comentar as coisas bacanas que aconteceram durante o dia...rs.
;*

Anônimo disse...

Logo eu que disse
Que o ateu é o órfão
Adotado pelo Diabo...

É.


Pode haver algalguém
Acima dos homens
Diverso de um deus, "exempli gratia", uma barata.

Anônimo disse...

"eu-esposa-filha cochilando nas cadeiras porque Satanás não queria nossa participação naquela missa".
ho ho ho!
BRAVO Sr. Ricardo Wagner!
Não sabias que era um sobrevivente?
Você passou por verdadeiras torturas.
Transformou a merda em talento.
Bela caligrafia é para quem tem a beleza de dentro.
Como os poetas.
O terrível
Wild!
Excelente texto!

Anônimo disse...

Fico na dúvida entre a realidade e a ficção das suas palavras. Me lembro que a dor pode ser dimensionada em qualquer das circunstâncias. É um relato humano, demasiadamente humano. Expõe as vísceras, além do sangue. Não sei se teria a mesma coragem. Recorro a metáforas tanto da dor quanto do prazer. Um grande beijo.

Anônimo disse...

A verdade é que tem muita gente a se esconder por d'trás da religião, numa vida de prostituição ideológica... concordo sim, que blasfema aquele que crê,pois o Ateu já tem por convicção que não exista o DEUS da forma que o cristão vê!